Não estamos em 1974. Naquele ano, após a renúncia de Richard Nixon, em 8 de agosto, o vice, Gerald Ford, assumiu a presidência dos Estados Unidos e perdoou o antecessor por todos os crimes, exibidos ao mundo no escândalo Watergate. A partir dali, qualquer ação de Ford ao longo de seus três anos de mandato carregaria o peso do pecado original, de ter livrado seu correligionário de responder por seus atos no Salão Oval da Casa Branca.
O também republicano Donald Trump perdeu a reeleição em 2020, após sobreviver a dois processos de impeachment. Não recebeu nem receberá o perdão presidencial de Joe Biden. Mas o cerco está se fechando contra ele. Na segunda-feira (8), ironicamente exatos 48 anos depois da renúncia de Nixon, Trump teve sua mansão na Flórida invadida por agentes do FBI (polícia federal americana) com ordem judicial. Mar-a-Lago, a residência em Palm Beach, era, nos tempos do mandato, mais do que apenas o refúgio de inverno de Trump. Era uma espécie de filial da Casa Branca.
Talvez por isso - e por em geral confundir o público e o privado -, o ex-presidente tenha decidido, ao limpar as gavetas de seu gabinete, levar para lá documentos do governo. Possivelmente, não eram apenas relíquias, presentes ou suvenires de seus "anos dourados" como comandante-em-chefe da nação mais poderosa do planeta. Tudo indica que Trump subtraiu documentos oficiais do mandato, inclusive alguns "classificados" - jargão utilizado pelo governo americano para designar papeis confidenciais.
Esses documentos pertencem ao Estado - são documentos que entram para a História. Antes de tudo, eles devem ser guardados pelo Arquivo Nacional da Casa Branca. Em fevereiro, por exemplo, Trump precisou devolver 15 caixas ao órgão com papeis retirados indevidamente, entre eles correspondências trocadas com o ditador da Coreia do Norte, Kim Jong-un. Em segundo lugar, em se tratando de um presidente suspeito de ter insuflado apoiadores a cometerem o maior ataque à democracia da história dos Estados Unidos, a invasão do Capitólio, em janeiro de 2021, o gesto de levar consigo documentos pode fazer parte de uma ação orquestrada para queima de arquivo. Diversos são os relatos de ex-funcionários da Casa Branca segundo os quais Trump teria rasgado inúmeros arquivos e os jogado na privada de seu gabinete.
Trump é alvo de duas investigações relacionadas ao ataque ao Capitólio, uma pelo Ministério da Justiça e outra de uma comissão do Congresso. Ambas estão no âmbito administrativo. A eventual subtração dos documentos pode ser o início de uma migração das ações para a esfera criminal.
A invasão da propriedade de um ex-presidente, em ação de busca e apreensão, como ocorreu na segunda-feira (8), é algo inédito na história dos Estados Unidos. E veio no momento em que Trump se arma para lançar campanha presidencial de 2024 com as mesmas falsas alegações de fraude eleitoral em 2020. Nem ele nem seus apoiadores desistiram da mentira criada para contestar a lisura do sistema americano e a consequente vitória de Biden.
Astuto que é, Trump se aproveitou da ação policial para virar o jogo, alegando que sua residência estava "sitiada, invadida e ocupada" e que seu cofre foi violado, criando uma narrativa de que tudo seria parte de uma operação dos democratas para barrar sua candidatura - a única verdade nisso é que, sim, se ficar comprovado que ele cometeu crimes, como a subtração de documentos confidenciais, manipulou memorandos e e-mails, ele ficará inelegível. Trump foi rápido em aproveitar-se politicamente, conclamando os apoiadores a irem até sua residência em Palm Beach- ele estava em Nova York no momento da ação. Seus aliados amplificaram a gritaria por meio de redes sociais, enquanto Trump, com a mesma linguagem explosiva de quando tuitava desenfreadamente da Casa Branca contra inimigos - reais ou imaginários -, buscava fazer os americanos o verem como vítima de um conluio democrata.