A atual crise na Argentina, que levou a mudanças no ministério do presidente Alberto Fernández, é mais política do que econômica, na opinião do professor Hernan Neyra, da Universidade de Buenos Aires (UBA).
Em entrevista à coluna, ele explica as divergências internas atingem tanto o peronismo quanto a oposição, de direita, o que dificulta arranjos para resolver problemas estruturais, como os altos índice de desemprego, inflação e pobreza no país. A seguir, os principais trechos da conversa com o economista.
Que leitura o senhor faz da crise atual?
Não temos uma longa cultura de frentes ou de agrupamentos políticos. Tínhamos uma tradição de dois grandes partidos, o peronismo e a União Cívica Radical (UCR). Neste século, a coisa mudou: são agrupamentos menores, no peronismo e na UCR. As chapas que se apresentam não são puras. Esse é o problema, o peronismo não está acostumado a governar com outras. Não é fácil a convivência dentro do espaço peronista. A forma de organização do governo é estranha, a administração Mauricio Macri (governo anterior) tinha ministérios para cada um dos partidos que formavam a coalizão. Nesse governo, não há partidos para cada ministério, mas distintos representantes de cada uma das áreas do governo em cada pasta. Isso é um problema porque não há acordos dentro de cada ministério. Não temos uma posição única dentro de cada ministério. E isso complica a tomada de decisões. Por isso se vê que um ministro dizer uma coisa e um secretário do mesmo ministério dizer outra, contrária. Isso é o que cria confusão porque os empresários não veem uma política única. Isso é parte do conflito político no peronismo.
É verdade que Alberto Fernández e Cristina Kirchner não se falam ou isso é folclore político?
Há menos diálogo do que se poderia supor. Isso se vê nas decisões. Uma parte é certa, outra é exagero dos meios de comunicação. Porque não é necessário que se falem todo o tempo. Mas, sim, há alguns curto-circuito entre as decisões da vice-presidente que são diferentes de Fernández.
Cristina tem projeto de voltar ao poder?
As expectativas ou ao menos as pesquisas não são favoráveis. 2023 não parece que será um ano para Cristina. Mas, sim, ela está buscando um discurso para 2023, mais à esquerda no campo social e mais à direita no campo econômico. Seria um peronismo mais clássico, não um peronismo de esquerda. Uma política mais de direita com uma visão mais social.
Isso significa menos gastos públicos?
Em alguns, mas não em todos: baixar alguns gastos para aumentar o gasto social.
A impressão que se tem é de que a Argentina sempre está em crise. Que tamanho tem a atual do ponto de vista histórico?
Essa crise é mais política do que econômica. A produção industrial está perto do recorde de 2017, ainda que esteja em desaceleração. Tampouco há crise de balança comercial: seguimos tendo mais exportações do que importações. Não tantas quanto no ano passado, isso é um problema, porque o saldo do comércio é menor do que no ano passado. Mas seguimos tendo um superávit comercial. As exportações estão crescendo muito mais do que as importações, é o que a nova ministra da Economia tentará, agora, corrigir. Ela propôs um novo imposto sobre os pagamentos de turistas no Exterior para corrigir um dos problemas mais graves que temos, a saída de dólares, no turismo ao Exterior. Há correções, não há nada muito grave. O principal problema é a taxa de câmbio, que a nova ministra está tentando corrigir a nova ministra. O desemprego está baixando.
Mas a inflação de 60% é muito alta.
Sim, mas não é o principal problema. Temos 37% de pobreza, isso é acumulado de anos. Para mim, esse é o principal problema. O governo Fernández está fazendo uma política de impulso à demanda. E é impossível ter impulso da demanda com baixa de inflação. Fernández prefere reduzir da pobreza o desemprego antes que baixar a inflação. Essas são decisões políticas. Eu, pessoalmente, compartilho que o principal problema é a pobreza. Então, é difícil conseguir resolver dois objetivos como a baixa da pobreza e da inflação. A preferência do governo é baixar a pobreza e o desemprego.
E como está organizada a direita? Mauricio Macri poderia ser candidato para a eleição de 2023?
O mesmo problema que tem o governo Fernández e o peronismo de forma geral, de ter dois ou três olhares diferentes sobre os problemas políticos e econômicos, o mesmo ocorre com a direita, onde também há posicionamentos diferentes: um mais à direita, um de centro e outro um pouco mais à esquerda. O mesmo problema vai ter a oposição para conformar uma chapa única. Não vai ser fácil porque apareceu um candidato da ultradireita, Javier Milei, que tenciona a oposição. Há um setor da oposição de Juntos por el Cambio que pressiona por seguir mais à direita, e o resto não é tão favorável.
Diante das crises, os argentinos costumam recorrer ao dólar. Como poderia reforçar a moeda argentina, o peso?
Não tenho a solução. Mas um dos problemas é a perda de valor das poupanças em pesos. Por isso, as pessoas recorrem ao dólar como moeda mais forte. O problema com o peso é que as poupanças perdem valor de compra. E a única forma de solucionar isso é subindo a taxa de juro. Isso favorece a poupança, mas desfavorece os industriais. É um problema de como distribuir a riqueza entre as famílias ou entre as empresas. É muito difícil chegar a acordos, se não há acertos massivos em nível político. Qualquer redistribuição de renda implica grandes acordos políticos, e não estamos em condições disso. Se não há acordos dentro do oficialismo e na oposição, dificilmente poderemos ter arranjos entre um e outro lado para soluções a longo prazo.