O Reino Unido deixou a União Europeia (UE), com o Brexit, mas Boris Johnson não pode fazer no reino de Sua Majestade tudo o que lhe der telha. Felizmente.
Embora o país não faça mais parte do bloco econômico, o país é ainda signatário de acordos internacionais que constrangem seu governo e o forçam a obedecer a decisões supranacionais, como da Corte Europeia de Direitos Humanos, que barrou a estapafúrdia ideia de Johnson de enviar para Ruanda, em um voo só de ida, quem entrou ilegalmente no Reino Unido a partir de janeiro.
Isso mesmo: não se trata de enviar de volta ao país africano ruandeses, o que, por si só, já seria um absurdo. Seu desejo é mandar TODOS os imigrantes ilegais - sejam ruandeses, congoleses, sírios, iraquianos e, quiçá, no futuro, brasileiros. O voo, fretado a um custo de 500 mil livras e cuja decolagem foi abortada quando a tripulação já estava a bordo, foi interrompido graças a uma liminar da Corte Europeia a pedido de um cidadão iraquiano, o que acabou impedindo todos os demais de serem transportados.
Johnson até pode tentar adotar um verniz moderninho em fóruns internacionais, mas, de tempos em tempos, seu lado autoritário vem à tona. Inevitavelmente. A ideia de enviar, como gado, seres humanos para um país a 7 mil quilômetros de Londres, é não apenas violação aos acordos internacionais e estatutos, como o dos Refugiados, de 1951- que exige que requerentes de asilo sejam protegidos no país em que chegam e que não podem ser enviados à força para áreas inseguras. É uma tentativa de terceirizar a questão, criar, em outro país, um depositório de pessoas, um gueto, uma medida tão condenável quanto as que o ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump implementou, separando crianças de seus pais, colocando-as em jaulas e por vezes deportando ilegais. Só foi parado também na Justiça, no caso de seu país.
No Reino Unido, a Suprema Corte irá julgar a legalidade da medida nos próximos dias. Ou seja, esse foi apenas o primeiro round perdido por Johnson, que acusou setores de esquerda de barrarem sua agenda. Detalhe: a ideia é criticada pela Igreja Anglicana e até pelo herdeiro do trono, o príncipe Charles, que não são exatamente modelos de lideranças progressistas.
Mas o que está por trás desse plano de Johnson? Trata-se de um claro aceno ao setor mais radical do Partido Conservador e a sua base de apoio. Não esqueçamos que o primeiro-ministro enfrentou há menos de duas semanas uma moção de desconfiança dentro de sua própria legenda. Sobreviveu. Mas a pequena margem que garantiu que ele ficasse em Downing Street indica que ele cairá logo ali à frente. Como Theresa May.
É um ato desesperado de Johnson para se manter no poder também diante de uma crise de imagem. Sua popularidade está em baixa, depois do escândalo das festinhas no gabinete no auge da pandemia - quando os britânicos estavam em casa e os próprios rituais fúnebres de despedida ao príncipe Phillip, marido da rainha Elizabeth II, foram restritos em razão da covid-19. A imagem da monarca solitária, de máscara, num banco no adeus ao marido, enquanto, na noite anterior, os homens mais próximos de Johnson bebiam vinho e festejavam em Downing Street é algo que não saiu da cabeça dos britânicos.
E por que Ruanda, um país pobre, com o 160º pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), aceitaria servir de depósito de refugiados? Em parte por dinheiro. Pelo acordo com o governo britânico, o país africano receberia US$ 144 milhões. O atual presidente do país, Paul Kagame, que ocupa o cargo desde 2000, ou seja, há 22 anos, vem tentando limpar a imagem da nação, marcada pelo genocídio entre hutus e tutsis, de 1994, quando mais de 800 mil membros da segunda etnia foram massacrados. No cenário internacional, ele tem pinta de reformista, de alguém preocupado com os problemas mundiais e disposto a abrir as portas do país a migrantes (de Síria, Burundi e República Democrática do Congo, principalmente). Ele próprio um refugiado em Uganda quando criança. Mas não se engane. Kagame é acusado de violação de direitos humanos, de eliminação de opositores e de vencer eleições por meio de fraude.
Como vivem os migrantes enviados a Ruanda? Cerca de 90% em campos de refugiados. Em 2018, forças ruandesas mataram 12 refugiados congoleses durante um protesto contra cortes nas porções de comida. e a polícia prendeu mais de 60.