O herói do Brexit está só.
Boris Johnson, o primeiro-ministro que conduziu o Reino Unido para fora da União Europeia (UE), encontra-se em uma tempestade perfeita e pode ter de deixar o poder.
São várias as crises. A mais visível é o escândalo das festinhas em Downing Street, no período mais dramático da pandemia, quando o país vivia forte restrições de circulação.
Foram pelo menos duas. Na primeira, em maio de 2020, entre 20 e 40 funcionários confraternizaram com queijos e vinhos nos jardins da residência oficial, enquanto os súditos de Sua Majestade não podiam sequer se reunir com mais do que uma pessoa fora de seu convívio habitual por conta da covid-19, muitos inclusive não podiam se despedir de seus queridos em funerais.
A denúncia apareceu nos jornais The Guardian e Independent, com direito a foto de Boris sentado ao lado de colegas de gabinete (próximos demais para uma pandemia) e a imagem do convite para o evento, que dizia: "Traga a sua bebida".
Depois de negar ter participado da festa e diante da prova irrefutável da foto, Johnson admitiu ter ido e pediu desculpas no parlamento. Na sua versão, entretanto, ele diz ter entendido que seria uma "reunião de trabalho", afirma ter permanecido "apenas 25 minutos para agradecer aos funcionários" e, logo, retornado ao gabinete.
A segunda festinha na residência oficial ocorreu no Natal de 2020, quando celebrações estavam proibidas no país. Sobre esse episódio, há ainda um componente de deboche: uma das assessoras de Johnson, que havia sido sua porta-voz na COP26, apareceu em um vídeo rindo do que os britânicos diziam no Twitter sobre o evento. Sobre essa festa, não se sabe se Johnson compareceu. Ao menos, até agora. Aguardemos cenas dos próximos capítulos.
Enquanto as notícias sobre as festinhas no governo eram divulgadas, o secretário da Saúde, Matt Hancock, conclamava a população a ficar em casa e a cumprir as regras. Ele era um dos que apareciam nas fotos dos eventos.
O primeiro-ministro vive mais do que uma crise de imagem. Escolhido líder do partido em substituição a Theresa May, Johnson realizou uma manobra política no final de 2019, convocando eleições a fim de angariar apoio político para realizar o que nenhum antecessor conseguira levar adiante - o Brexit. Com a vitória espetacular, ele levou a cabo a saída do Reino Unido da UE. Mas veio a pandemia, e sua gestão foi errática: em um primeiro momento, dando sinais de que o melhor mesmo era deixar a população se contaminar, a famosa "imunidade de rebanho". Depois de infectado e de sua quase morte, ele mudou de discurso e atitude. Viu que a covid-19 não era uma "gripezinha". Calçando as sandálias da humildade, passou a coordenar campanhas por distanciamento social e outros cuidados, e, quando a vacina surgiu em seu próprio país - graças à prestigiosa Universidade de Oxford - foi um fomentador do produto.
Mas o "faça o que eu digo, não faça o que eu faço" não deu certo. É assim em país sério: falta de coerência ou hipocrisia de autoridades pode custar o cargo.
No caso de Johnson, há outros fatores que aprofundam seu inferno astral. Recentemente, ele se envolveu em outro escândalo, quando reformou seu gabinete com verba não declarada doada por uma empresa privada. O premier foi responsabilizado, e seu Partido Conservador multado.
Menos visível, porém, do que os escândalos que levam ao desgaste da imagem do primeiro-ministro está as articulações que ocorrem não muito longe de Downing Street, a duas quadras dali, no Palácio de Westminster. E eu diria nas entranhas de seu próprio partido.
Recentemente, o parlamento aprovou novas medidas de restrição para conter a variante Ômicron do coronavírus, entre elas o retorno do uso de máscaras em ambientes fechados, vacinação obrigatória para profissionais de saúde e apresentação de certificado de imunização para entrar na maioria dos locais. Tudo ok para tempos de pandemia, não é mesmo? Só que muitos integrantes do partido de Johnson viram nas medidas um ataque às liberdades individuais e empreenderam uma minirrevolução. Não foram um ou dois. Quase cem deputados votaram contra a exigência de certificado de vacinação e obrigatoriedade de imunização para profissionais de saúde.
Esses parlamentares querem o fígado de Johnson! E são mais do que suficientes para compor uma carta a uma comissão do parlamento o início de um processo de desconfiança que pode culminar em sua saída do cargo. Para que isso seja possível, é necessário que 15% da bancada do Partido Conservador evoquem a desconfiança - trata-se de 55 dos 361 deputados conservadores. Em seguida, o caso é levado a plenário. Para que o premier seja deposto é necessário maioria simples: 326 dos 650 assentos.
No caso de Theresa May, em 2019, tudo ocorreu no mesmo dia.
A imprensa britânica já especula nomes para o futuro morador de Downing Street: Rishi Sunak, o "chanceler do Tesouro", e Liz Truss, secretária de Exterior, são os mais cotados. Ambos, foram muito bem durante a pandemia, quando a economia sofreu o baque do coronavírus, e nas negociações para a saída da UE. Mas também são citados Michael Gove, Jeremy Hunt e Dominc Raab.
Em tempo: se o parlamento aprovar a saída de Johnson, não há eleições gerais. Basta o seu partido, que tem maioria, escolher um novo líder, que, obviamente, precisa apresentar suas credenciais e receber a bênção da rainha Elizabeth, em um processo formal. As eleições gerais no Reino Unido estão previstas para maio de 2024.