Nada como derrotas consecutivas para fazer um político teimoso calçar as sandálias da humildade. Primeiro, Boris Johnson ficou sem maioria na Câmara dos Comuns. Depois, perdeu o direito de ditar a agenda de votações na Casa. E já não pode fazer o que quiser com o Reino Unido à revelia do parlamento. Resultado: amenizou o discurso. Nesta segunda-feira (9), na Irlanda, afirmou que a saída britânica da União Europeia (UE) sem acordo seria "um fracasso político". E pensar que há apenas quatro dias dissera que preferia morrer a pedir novo adiamento a Bruxelas — de 31 de outubro para 30 de janeiro.
Oficialmente, o parlamento britânico está fechado até 14 de outubro no momento em que o Reino Unido discute sua decisão mais importante em sete décadas. Só Johnson acredita que o assunto do Brexit ficará parado porque os deputados estão em férias forçadas. O debate continuará na imprensa, no WhatsApp dos parlamentares, em telefonemas e nas ruas _ as manobras autoritárias do premier nos últimos dias acabaram por atrair de volta a atenção de uma população já cansada dessa novela.
Desde o referendo de 2016, o Brexit já derrubou dois primeiros-ministros: David Cameron convocou a votação e renunciou no dia seguinte; Theresa May assumiu, mas não conseguiu aprovar seus acordos com Bruxelas. Renunciou na prorrogação. Não custa aos britânicos, pelas regras do parlamentarismo, derrubarem mais um premier. Johnson está desgastado fora e intramuros de Westminster — viu reduzida sua base de apoio com a expulsão de dissidentes do Partido Conservador e a revolta de outros. Uma nova eleição, se houvesse, seria algo como um segundo referendo com chances de derrota para Johnson e mudança de postura dos britânicos sobre a UE — a diferença entre sair e ficar foi de 1,2 milhão de votos há três anos (3,7 pontos percentuais).
Entre tantas dúvidas sobre o dia seguinte ao Brexit, uma das principais é a questão da Irlanda, país independente que pertence ao bloco europeu. Hoje, não há fronteira entre a nação e a Irlanda do Norte, território britânico encravado na mesma ilha. Milhares de pessoas cruzam de um país para o outro todos os dias, e bens e serviços passam sem restrições. Com o Brexit, seria implantada ali uma fronteira física. Pessimistas falam até no retorno da tensão encerrada com o acordo de paz da Sexta-feira Santa, assinado em 1998, que colocou fim a quase 40 anos de conflito entre protestantes, favoráveis à manutenção da Irlanda do Norte sob controle britânico, e católicos republicanos, que queriam a reunificação com a República da Irlanda, de maioria católica.
Para a UE, a solução seria um regime de transição — o chamado "backstop", termo que significa rede de proteção, uma garantia de que mesmo com o divórcio litigioso, o livre-trânsito continue funcionando. Johnson vê nisso tentativa de Bruxelas de manter ingerência sobre o Reino Unido.
Nesta segunda-feira, na Irlanda, o premier afirmou ter "ideias para apresentar" que permitissem a saída do bloco até 31 de outubro. A depender do que vazou para a imprensa no fim de semana, algumas são rocambolescas. O Daily Telegraph publicou um suposto plano de enviar a Bruxelas duas cartas: uma pedindo o adiamento do Brexit e outra afirmando que o governo não deseja novo prazo. A ideia é forçar a UE a negar a prorrogação do prazo. Com isso, o premier não estaria descumprindo a lei — que proíbe saída sem acordo e poderia levá-lo para a cadeia —, mas, ao mesmo tempo, a estaria sabotando. Para quem já brincou com a democracia britânica em dia 28 de agosto ao anunciar a prorrogação do recesso do parlamento em um momento crucial do país, não seria surpresa se tirasse mais esse coelho da cartola.