Ao ver homens, mulheres e crianças sob o jugo do Estado Islâmico, o catarinense Jefferson Silveira, então morando nos EUA, passou a procurar nas redes sociais grupos que aceitassem voluntários para ajudar na batalha contra a organização terrorista conhecida por decapitar seres humanos ou queimá-los em jaulas. Encontrou no Facebook uma página ligada ao YPG (Unidades de Proteção do Povo).
A ordem era clara, porém evasiva: “Compre uma passagem para o Iraque e receberás um número de telefone”. Mesmo em dúvida sobre como seria a aventura no Oriente Médio, Jefferson, que é formado em Ciências da Computação, estava disposto a ajudar a população a defenestrar os jihadistas. Queria ser voluntário. Viajou para a Suécia e de lá para Sulaymaniyah, no Iraque. Atravessou para a Síria, onde passou a ir de vila em vila, armado com fuzis M-16 e AK-47, para expulsar os terroristas, que muitas vezes mandavam carros-bomba em sua direção. Seu nome como combatente era Soresh (guerreiro). Jefferson, hoje com 46 anos, lutou cinco meses na Síria em 2015 e outros seis meses entre 2016 e 2017. Em conversa com a coluna, ele conta o dia a dia no front.
O contato
Eu tinha acabado de voltar para os Estados Unidos, tinha feito minha universidade aqui, na Univale, em Itajaí. Ficava assistindo àquelas propagandas que o Estado Islâmico colocava nas redes sociais, coisas horríveis. Comecei a pensar: ‘Tenho de fazer alguma coisa, ajudar de alguma forma’. Comecei a procurar nas redes sociais maneiras de fazer isso. Foi quando vi uma foto de um voluntário, vestido de militar, e pensei: ‘Como esse cara está lá lutando?’. Daí, achei uma página no Facebook, Lions of Rojava. Entrei, vi que postavam várias coisas de voluntários estrangeiros. Mandei uma mensagem. Levou sete ou oito dias para responderem. Recebi uma mensagem muito curta e com o inglês bem errado: ‘Compre uma passagem e depois se comunique conosco’.
Pensei que era fake. Mas fiquei com aquilo na cabeça por alguns dias. Pensei: ‘Vou comprar’.
Comprei para Sulaymaniyah, no Iraque, e mandei a foto (do comprovante) para eles, que disseram: ‘Quando chegar o dia da viagem, te mandamos um número de telefone’. Mas eu tinha mais um monte de perguntas a fazer. Enviei, mas não recebi resposta. Quando chegou a data da viagem, pensei: ‘Vou arriscar’. Quando cheguei lá, liguei para o número, não funcionava de jeito nenhum. Eu estava no aeroporto de Sulaymaniyah, na região do Curdistão. O aeroporto é só um galpão. Não tinha nem celular, não sabia como comprar um chip para usar. Só tinha um balcãozinho com umas Coca-Cola para vender. Pedi para ele fazer o favor de ligar para o número. Ninguém atendia. Já entrei em pânico: ‘Era fake, agora vou ter de comprar uma passagem para voltar’. Eram 4h da manhã, não tinha para onde ir, estava escuro.
O aeroporto cheio de barricadas. Tinha um rapaz do lado, pedi de novo. Ele ligou e alguém atendeu. Disseram:
– Amanhã de manhã, nós buscamos ele.
Daí, me levaram em um táxi até um hotel. Fiquei esperando esse cidadão lá, que não conhecia. Pela manhã, ele apareceu e me levou para uma casa, onde havia outros voluntários esperando para cruzar a fronteira.
A travessia
A travessia é completamente ilegal. Tem os peshmerga (exército curdo) de um lado, no Iraque, e do outro lado, é a Síria. As fronteiras estavam fechadas. É crime cruzar fronteiras sem autorização. O que o YPG (Unidades de Proteção do Povo) faz? Ficam quatro horas caminhando. Em cada lado da fronteira, vais andar no escuro, tens de passar por todas as guaritas, as bases do peshmerga. Eles fazem um barquinho inflável, tu botas tuas coisas ali dentro, se molha todo. Acaba quase congelado. Eles colocam o máximo de pessoas possível dentro daquele barquinho, umas 22. E eles vão atravessando com dois remos na escuridão até bater do outro lado.
No caminho todo, tu achas que ‘já era’. A todo momento era um risco, a pessoa está vivendo o presente. O risco já começa no momento em que tu estás no aeroporto, esperando por uma pessoa que tu nem sabes quem é. Pode ser até alguém do Estado Islâmico que armou uma página de armadilha.
Dentro da síria
Quando tu chegas à base, na Síria, conheces um grupo de encarregados. Não são oficiais, nem título têm. Mas são pessoas que organizam a situação de todo mundo. Eles têm certo medo de rádio, de celulares. Então, recebem papeizinhos embrulhados em fita durex. As ordens vêm nesses quadradinhos de papel no idioma deles, transportadas de carro. Alguns curdos entendem inglês, outros, alemão. É aquele inglês bem quebrado, básico. Não dá para fazer uma conversa profunda ou longa.
Quando cheguei em 2015, o YPG estava no começo, era uma organização com poucas pessoas.
Hoje, tem 60 mil. Naquela época, não tinha 7 mil soldados. A logística era toda errada. Muita gente morta e capturada por erro de logística. Entravam em uma área e não percebiam que estavam dentro da área do inimigo. Enchiam dois a três carros nas vilas para ver o que estava acontecendo lá. Caso houvesse inimigos lá, tu entrarias em combate. Tu vai saber porque vão começar a atirar em ti antes de tu chegares na entrada da vila. Quando fui em 2016, era completamente diferente. Já tinha uma organização. Tinham iPads com GPS, sabiam as áreas em que o Estado Islâmico estava, porque os americanos começaram a apoiá-los e começou a entrar mais tecnologia. Mas, mesmo assim, porque são um povo com menos conhecimentos em certas áreas, ainda apanhavam muito nessas coisas.Sabiam mais ou menos o que estavam fazendo, mas nunca com certeza.
Os armamentos
Na primeira vez, tive sorte, peguei um M-16. Na segunda, preferi pegar um AK-47, porque, para M-16
era difícil achar munição. Tinha de carregar um monte extra. Na segunda vez, preferi um AK-47, que tinha munição para tudo quanto era lado. O lugar mais próximo que tive do inimigo foi em certas áreas em que entramos de carro. Atiravam em nós e recuávamos para trazer mais gente. Houve áreas em que mandavam carros suicidas. Tu vês o carro vindo, porque geralmente ele está todo fechado com metal. Dá para ver que fizeram alguma coisa muito diferente naquele carro. Escapei duas vezes de carros-bomba que chegaram bem próximos da casa onde eu estava. De combate, de arma em arma, o lugar mais próximo que tive foi uns 150 metros. Estávamos em um vilarejo cristão, e eles estavam do outro lado, dava para vê-los caminhando de uma casa para outra. Eles gritavam: ‘Allahu Akbar’
(Deus é grande). Conseguia ouvir claramente, porque era muito pertinho. Na hora, tu não estás pensando, tu estás tentando pegar os caras, acertá-los e te proteger.
A gente não sente medo de morrer ou que vai ser capturado naquela hora. Teu instinto toma conta. Eu só queria acertar nos caras.
Os mortos
Não tenho certeza de quantos terroristas eliminei, porque atiravam de dentro das casas, a distâncias de cem, 150 metros. Claro, quando tu ouves que pararam os tiros vindo, sabes: ou morreram ou saíram dali. Daí tu chegas dentro do local e vês que há uns corpos. Mas é uma galera atirando junto, não era só eu. Era todo o meu time, por volta de 20 homens, atirando na mesma janela. Não dá para dizer ‘fui eu que eliminei certa pessoa’. Todo mundo tem sempre duas balas a mais, uma em cada bolso, e uma granada extra, que tu não vais usar (no combate). Em último caso, tu usas em ti mesmo. A última coisa que tu queres é ser capturado. As histórias das pessoas que foram capturadas e os vídeos sobre o que fizeram com elas são horríveis. Ninguém quer passar por aquilo. Então, é melhor te matares.
A última coisa que tu queres é ser capturado. As histórias das pessoas que foram capturadas e os vídeos sobre o que fizeram com elas são horríveis. Ninguém quer passar por aquilo.
JEFFERSON SILVEIRA
A distância da família
Não falava com eles, porque, para usar internet, tinha de comprar um chip. Nunca comprei. Só falava quando tinha wi-fi em alguma cidadezinha e podia usar por alguns minutos. Alguns voluntários tinham e se comunicavam direto com a família. Tenho filhos na Califórnia e uma filha em Portugal (Jefferson tem cidadania americana). Não comentei que iria para a Síria. Ninguém entende essas coisas. O pessoal sempre acha que o pior vai acontecer, que não é uma decisão bem pensada. Não entendem o que a pessoa sente por dentro. Pensei: ‘Posso ajudar de alguma forma’. Mesmo sabendo que é superlimitado. Uma pessoa sozinha não faz muitas coisas. Mas eu queria participar de alguma forma.
O arrependimento
Voltei para a Califórnia, tinha uma coisa burocrática para resolver. Minha ideia já era voltar para o Brasil e morar aqui. Eles te compram passagem para voltares. É a única coisa que te dão. No momento em que esperava para entrar no avião, já estava meio arrependido. Pensei: ‘Vou deixar meus colegas, todo mundo ainda continua lá, na frente de batalha, e eu vou embora’. Comecei a me sentir superculpado. Durante a viagem, fiquei o tempo todo pensando: ‘Meu, por que não fiquei?’. A pessoa começa a se sentir meio covarde. Nunca quis me meter no conflito do povo contra o ditador. É uma questão que eles têm de resolver. Minha coisa toda foi contra o Estado Islâmico. Se o conflito começar a piorar, com certeza voltarei. Agora conheço o povo curdo e a intenção deles, eu iria ajudar. Mas, como está tudo se ajeitando, apesar de ser um processo superlento, acho que não há necessidade de retornar.
Lá, tu estás vivendo a tua vida de verdade, a coisa da sobrevivência, de instinto, de viver o momento sem ficar pensando no passado ou futuro. Aqui, não. Tem toda uma máscara, jogo que jogas: dinheiro, status social, imagem para viver em sociedade.
JEFFERSON SILVEIRA
A saúde mental
Não sonho com isso, mas tem cenas que ficam marcadas. Às vezes, tu estás fazendo uma coisa em casa ou caminhando por algum lugar e as imagens passam pela tua cabeça. É uma coisa de segundos, que está guardada em algum lugar da mente e aquilo sai de uma hora para outra. Mas não diria que é trauma. São cenas fortes, que vão ficar para sempre, como as outras coisas da vida. Muda a pessoa. Não tem como não mudar. É um contraste para essa vida que vivemos. Lá, tu estás vivendo a tua vida de verdade, a coisa da sobrevivência, de instinto, de viver o momento sem ficar pensando no passado ou futuro. Aqui, não. Tem toda uma máscara, jogo que jogas: dinheiro, status social, imagem para viver em sociedade. Lá, essa imagem desaparece. O teu ego desaparece. É só tu e os teu amigos tentando sobreviver.
O futuro
Estou sempre procurando voluntariado. Ainda não encontrei uma área exata, mas, quando posso fazer qualquer coisa, faço. Minha ideia é ficar aqui. Sempre quis voltar para o Brasil e viver mais perto da praia. Eu morava em San Jose, na Califórnia. No começo, quando tinha 20 anos, adorava aquela muvuca, mas a pessoa vai ficando mais madura, vai querendo ficar mais de boa. Sou nascido e criado em Brusque. Pensei: ‘Vou voltar e viver uma vida mais amena e fazer o que posso fazer de trabalhos humanitários’.