A poucas horas de mais um protesto organizado pelos estudantes de Hong Kong, neste sábado (31), a China movimenta tropas na divisa com o território semiautônomo. A manifestação foi proibida pela polícia sob o argumento de que poderia terminar em violência.
Há sete anos morando em Hong Kong, a gaúcha Jessica Franz, natural de Sapiranga, acompanha com atenção as manifestações.
– Eles não vão parar – afirma.
Aos 31 anos, Jessica estudou negócios internacionais no Centro Universitário Metodista IPA e trabalha em uma empresa de consultora que facilita negócios entre empresas brasileiras e asiáticas. Ela morou na China por um ano, mas conta que não se adaptou.
Em Hong Kong, segundo Jessica, a população tem maior liberdade, a internet não é controlada e as facilidades são típicas de um país capitalista. As diferenças em relação ao território chinês são tantas que a gaúcha, durante a entrevista, chega a considerar "outro país". Ex-colônia britânica, Hong Kong foi devolvido pelo Reino Unido ao governo chinês em 1997.
A região semiautônoma enfrenta há quase três meses a crise mais grave desde sua devolução, com manifestações quase diárias. Nas últimas horas, várias figuras importantes do movimento pró-democracia foram detidas. Na entrevista, Jessica comenta como está acompanhando as manifestações e o risco de invasão por parte das tropas chinesas.
Você morou na China e está em Hong Kong. Que diferenças percebe?
É totalmente diferente. Até para ir para a China é necessário passar por imigração. Os chineses precisam de visto para vir para Hong Kong. A língua é diferente, o cantonês. Na maior parte da China, o idioma é o mandarim. A moeda é diferente: aqui é o dólar de Hong Kong, lá (na China) é o iuan. Tudo é diferente, até o comportamento das pessoas. Na China, por ser estrangeira, parece que a gente está em uma bolha. Morei lá em 2011, não conseguia entrar em contato com meu pai pelo Orkut, não tinha como contatá-lo de outras formas a não ser por email. Quando vim morar aqui, tudo se tornou mais fácil, até para montar minha casa, para ligar para alguém para pedir para instalar a internet. Na China, qualquer coisa que tu vais fazer é uma dor de cabeça, é tudo difícil.
Como são os dias de protesto?
Durante o Occupy Central , o protesto de 2014, fui com meu pai. Meu pai, que mora na zona norte de Porto Alegre, veio me visitar. Ele viu os protestos e comentava: "Nossa, como são pacíficos os manifestantes, ficam em frente à polícia, ficam lá, sentados, só querem passar a ideia de que não estão felizes". Agora, meus amigos de Hong Kong disseram: "Não vai, porque o pessoal está bem chateado e vai ser violento". Acabei decidindo não ir. Não sei se sou uma pessoa que tenha de me posicionar, porque, no fim, esse não é meu país. Apesar de que, em outubro, terei identidade permanente. Já me sinto como se fosse parte daqui. Mas não nasci aqui, acabei decidindo não ir.
Como as pessoas se organizam? Muda alguma coisa no dia a dia da cidade?
Mudou. Nos últimos tempos, houve um protesto bem grande. A gente tenta não passar por aquela área. Não acontece em toda Hong Kong. Ocorre em lugares específicos. Fico sabendo pela mídia onde vão ocorrer. Moro no centro. Aqui perto, fica um prédio do governo da China, a gente procura não ir lá para aqueles lados. Nos primeiros protestos, foi mais difícil, a gente não esperava que ia ter tanta violência. Em um deles, eu tinha passado por perto, alguém jogou gás lacrimogêneo, eu senti. Houve um dia em que o protesto ia ocorrer perto do meu trabalho, e todas as empresas da volta decidiram que os funcionários não precisavam ir trabalhar por questão de segurança e porque o transporte público ia ser afetado.
Como você percebe a organização dos manifestantes?
São os estudantes que se organizam. No início, o pessoal de Hong Kong estava muito unido. Agora, já estou sentindo que as pessoas mais velhas já não continuam (participando).
No Brasil, a gente vê um protesto com violência é uma coisa normal. Aqui, não, eles já acham que aquilo é horrível, que estão pegando pesado
JESSICA FRANZ
Os manifestantes têm a simpatia do cidadão comum?
Tem simpatia, mas comecei a notar, perguntando aos meus colegas, que o pessoal mais velho, mães e pais, estão abalados porque está acontecendo violência. Eles não estão acostumados com violência. No Brasil, a gente vê um protesto com violência é uma coisa normal. Aqui, não, eles já acham que aquilo é horrível, que estão pegando pesado. Mas acho que a maioria das pessoas ainda apoia.
E o fato de a China ter concentrado tropas na divisa com Hong Kong. Há risco de endurecerem e ocuparem o território?
Acho muito difícil. Acredito que tem alguns interesses da China em Hong Kong. Estou em dúvida se isso (a movimentação de tropas) é realmente verdade. Perguntei para o pessoal aqui eles acham que é possível (uma invasão). Eles disseram que a ameaça militar não é motivo para eles pararem. Eles não vão parar. Eles estão levando muito a sério.
Os protestos começaram por conta de um projeto de lei que permite extradição de moradores de Hong Kong para serem julgados na China. Mas não parece ser só por isso. Há um pedido por maior autonomia ou até independência?
Começou com o projeto de extradição e ainda estão protestando contra isso. Eles estão pedindo cinco coisas: esse projeto de lei, que ela (Carrie Lam, chefe do executivo de Hong Kong) suspendeu, mas eles querem que ela acabe com esse projeto de lei. No início, a polícia chamou as manifestações de tumulto, o pessoal de Hong Kong quer que corrijam isso. Que não chamem de tumulto ou baderna. Chamem de protestos. Eles também querem eleições livres.
Tem pedidos por independência?
Eu pergunto a eles: "Por que vocês estão lutado, se a China vai tomar conta?" ( O acordo de devolução prevê que a China possa controlar integralmente o território em 2047). Todos me falam a mesma coisa: "Mas não é agora. A China prometeu que não ia controlar a gente, e está controlando agora". Esse é o problema. Eles aceitam, sabem que daqui 28 anos a China vai controlar. Mas agora, não.
Qual o poder que esse governo local tem?
Na verdade, é estranho. São 60 residentes de Hong Kong que escolhem quem vai ser o chefe do Executivo de Hong Kong, mas a China escolhe as opções. Eles sentem que a pessoa é apontada pela China. O governo de Hong Kong não defende Hong Kong, defende a China. Ela (Carrie Lam) não se posiciona, ela fala, fala, mas não diz nada. O governo não consegue se posicionar. O governo de Hong kong tem ou não tem poder? Os manifestantes querem saber. A verdade é que não tem.
Voltando às diferenças em relação à China. Há alguma censura à Internet, Google, Facebook e à imprensa em Hong Kong?
Temos acesso a tudo, é super aberto. Existe só um ponto de tudo isso que sempre foi muito questionado. Todos os canais de notícia são levemente controlados pela China, o que eles publicam. Não é como na China, que é totalmente controlado. Aqui, pegam mais leve. Existe um jornal, Apple Daily, que é contra o governo da China, e agora estão dizendo que essa empresa está falindo.
Eles (os chineses) têm bastante interesses, eles precisam muito de Hong Kong. A China faz muitos negócios com os EUA por Hong Kong.
JESSICA FRANZ
Como era a sua vida na China?
Não conseguia acessar nada na internet. Era muito lenta, porque tudo é filtrado. Foi bem difícil aquela época. Aqui, é tudo normal. É superdesenvolvido. Muito diferente. Aí tu imaginas: um pessoal que nasceu aqui, que está acostumado com isso e aí tem um governo que quer controlá-los. Eu entendo, fico imaginando: se eu tivesse nascido aqui, eu também estaria lá (nos protestos).
Como você acha que vai terminar essa crise?
Realmente, não sei. O que sinto é que o pessoal não vai parar. Acredito que o governo de Hong Kong vai ter de posicionar de alguma maneira. Imagino que o menos provável seria um ataque da China, não acredito que isso vá acontecer. Eles (os chineses) têm bastante interesses, eles precisam muito de Hong Kong. A China faz muitos negócios com os EUA por Hong Kong, e eles precisam disso. Pode acontecer alguma coisa, mas acho que serão mais cautelosos. Os manifestantes estão muito fortes. É interessante que os mesmos estudantes que participaram do Ocuppy Central estão aqui, e estão mais frustrados ainda, até por isso estão mais violentos. Viram que nada mudou.