Só quem já entrou em uma loja de armas nos Estados Unidos tem a real noção da facilidade que é adquirir um equipamento mortífero.
Em estabelecimentos de calçada ou em shoppings, esses locais são uma espécie de parque de diversões para admiradores que têm, na maioria dos Estados, passe quase livre para a compra. Não é necessário enfrentar muita burocracia. Não há, na maioria dos casos, sequer verificação de antecedentes ou testes psicológicos. Basta dinheiro em espécie ou cartão de crédito. Em alguns casos, a identidade é solicitada. Mas não em todos.
Não à toa os Estados Unidos são o país com o maior número de armas de fogo em relação à população: segundo um estudo da Small Arms Survey (SAS), de 2017, há 120 armas para cada cem habitantes. No Brasil, conforme a mesma entidade, são, 8,3 para cada cem. A estimativa é de que os americanos possuem 393 milhões das 857 milhões de armas civis no planeta, 46% do total.
Dados do Gillfor Law Center mostram que metade dos 50 Estados americanos permite o porte de armas escondidas na maioria dos espaços públicos sem precisar de permissão ou verificação de antecedentes criminais. Ou seja, nenhuma autorização é necessária em Arizona, Arkansas, Idaho, Ohio, Texas, entre outros. E cerca de 44% dos americanos adultos nos EUA vivem em uma casa com uma arma.
Logo, também não é por acaso que massacres como da escola primária Robb, em Uvalde, Texas, se repitam com tanta frequência. Em nenhum outro lugar do mundo - onde há guerras, miséria, desigualdade social e extremismo - existe uma epidemia como essa.
Ter mais armas circulando facilita o acesso de pessoas com problemas ou de indivíduos com intenções de ataques terroristas a esse tipo de equipamento. Ou seja, maior controle sobre armas poderia ser tratado inclusive como um assunto de segurança nacional, tema do qual os republicanos tanto se dizem defensores quando lhes é interessante.
O presidente americano, Joe Biden, captou essa chaga aberta na sociedade americana em seu pronunciamento após o massacre de terça-feira (24), ao dizer que é necessário enfrentar o poderoso lobby das armas. Em 2021, ele apresentou uma proposta, limitando o acesso, mas a iniciativa esbarrou, como qualquer outra do tipo, na ação dos republicanos, que barram tentativas no Congresso de medidas como verificação obrigatória de antecedentes criminais e psiquiátricos de compradores.
O lobby de grupo de interesse, como a NRA (National Rifle Association), que inclusive financia campanhas políticas de congressistas, é algo institucionalizado na política americana. Assim, sempre que o Estado tenta controlar o acesso a esse tipo de equipamentos, grupos de pressão recorrem à Justiça para derrubar as iniciativas. Durante o governo de Barack Obama, quando houve aumento no número de massacres em escolas e outros locais, a Casa Branca também tentou limitar a compra, mas todas as iniciativas foram derrubadas pelo Congresso.
Segundo relatório divulgado pelo FBI, o número de incidentes provocados por atiradores dobrou nos EUA em três anos - de 30 em 2018 para 61 em 2021. Dez dias antes do ataque de terça-feira (24), no Texas, outras 10 pessoas negras haviam sido mortas em um supermercado de Buffalo, em Nova York, por outro homem, também com 18 anos.
E a partir de tragédias como Uvalde, Buffalo, Columbine, Sandy Hook e tantas outras, o debate sobre o controle de armas também é recorrente - e frustrante. Os defensores do livre acesso aos equipamentos se baseiam na Segunda Emenda da Constituição, como se fosse algo sacrossanto.
O texto foi ratificado em 1791, com objetivo de permitir o armamento de civis que compunham milícias voltadas para a segurança do país: "O direito do povo de ter e portar armas não deve ser infringido", diz. As milícias não existem mais. E, ora, se um direito se sobrepõe sobre outro, o da vida, que se mude a Constituição.
Claro que não é simples - nem suficiente "apenas" retirar armas de circulação - algo que, por si só, já não é fácil. É preciso mudar a cultura da violência, o belicismo americano, por vezes alimentado pela desigualdade social e racial, acrescido da polarização dos últimos anos. Para muitos americanos, um controle rígido sobre compra de armas significa a retirada dos direitos de defesa. E há quem argumente que se combata o aumento dos massacres com mais armas, como a ideia esdrúxula de alguns senadores republicanos de armar professores em sala de aula.
Os EUA já falharam ao tentar combater o terrorismo internacional com guerra - o rebote foi o aumento do extremismo no Oriente Médio e o retorno do Talibã ao poder no Afeganistão. Se não houver ações urgentes, amplas e não simplistas, também fracassarão em combater o terrorismo doméstico, hoje a principal ameaça à segurança da nação.