Já escrevi aqui que o Peru tem muito a dizer ao Brasil (para o bem e para o mal) sobre como enfrentar uma tempestade perfeita, cujas nuvens escuras se avolumaram desde 2020. Até então, havia no país vizinho instabilidade política, descrédito em partidos políticos tradicionais e polarização, uma tríade comum às nações latino-americanas "hermanadas" por esses suplícios. A esses fenômenos, foram acrescidas a maior pandemia em um século - e o Peru chegou a ser o país com maior número de mortos por habitante - e uma guerra na Europa.
Nos últimos dias, o Peru, que teve cinco presidentes em cinco anos - Pedro Pablo Kuczynski, Martín Vizcarra, Manuel Merino, Francisco Sagasti e o atual, o esquerdista Pedro Castillo -, vive uma nova onda de violência, que já provocou cinco mortes, incêndios em postos de pedágio, bloqueios de estradas, saques e confrontos entre policiais e manifestantes. O estopim, de novo, é econômico: o aumento do preço dos combustíveis e dos alimentos, em boa parte devido ao conflito na Ucrânia, com impacto especial a partir da dificuldade de importação de petróleo e fertilizantes. Ironicamente, Castillo, que tem uma rejeição superior a 60%, agora, perdeu apoio também de sua base, o setor rural, de onde emergiu como sindicalista e professor de escola do interior peruano.
A fagulha que reacendeu o barril de pólvora do país vizinho é econômica, mas não se pode perder de vista a dimensão política. Castillo é fruto de um processo eleitoral que deixou feridas abertas, devido a idas e vindas judiciais, por recontagem de votos em papel, por um resultado apertado - apenas 44.263 votos separaram o vencedor da segunda colocada, Keiko Fujimori - e pela demora da opositora, de mais de 40 dias, em reconhecer a derrota, episódios que fragilizaram ainda mais sua democracia titubeante. Ele chegou ao poder carregado por uma rejeição à classe política tradicional, que sempre esteve ligada à elite política e na esteira de uma versão peruana da Lava-Jato que colocou na cadeia boa parte dos políticos e empresários ligados ao poder. Para se ter uma ideia da corrupção estrutural do Estado peruano, mesmo antes dos presidentes citados no início deste texto, todos os anteriores, desde 2000, foram processados ou são suspeitos, Alberto Fujimori, Alejandro Toledo, Ollanta Humala e Alan García, esse último se matou quando a polícia chegou a sua casa para prendê-lo.
Castillo não conseguiu dizer a que veio - parte por inaptidão em conter a fragmentação institucional do país, parte porque, em nove meses de governo, precisou priorizar a sobrevivência política. Foi alvo de dois processos de impeachment nesse período. Depois do impacto da covid-19 na economia, veio o conflito na Ucrânia, elevando a inflação (6,82% em 12 meses, a maior desde 1998) e o desemprego (de 8,9%) e trazendo a dificuldade em importar fertilizantes e petróleo. Tudo isso levou trabalhadores rurais e transportadores - ironicamente os eleitores de Castillo - às ruas. Sob a sombra dos 30 anos do golpe do autocrata Fujimori, lembrado no último 5 de abril, o presidente decretou toque de recolher para tentar conter os protestos. A população rejeitou a ordem, os sindicatos dobraram a aposta, e Castillo precisou suspender a medida. Ele também voltou atrás no aumento do imposto sobre combustível, que havia definido para conter a alta do petróleo. Tudo indica que os recuos não serão suficientes. Castillo caminha a ser mais um despejado da Casa de Pizarro em um país que se especializou, nas últimas duas décadas, a destituir presidentes e a ganhar a alcunha de ingovernável.