Após 40 dias de tensa recontagem de votos, processos judiciais e denúncias não comprovadas de fraude, o Peru tem novo presidente eleito. O Júri Nacional de Eleições (JNE) concluiu na segunda-feira (19) a revisão das impugnações e apelações e Keiko Fujimori reconheceu a derrota, consolidando a vitória do candidato de esquerda Pedro Castillo.
O país que emerge do pleito é uma nação ferida - pelas idas e vindas judiciais, pela recontagem dos votos em papel, pelo resultado apertado (44.263 votos separam o ganhador da derrotada), o que, por si só, já seria motivo para instabilidade, e pela covid-19 (o país segue em primeiro lugar no ranking de mortos da pandemia no mundo, na proporção à população).
Mas tem mais: antes de chegar à eleição, o Peru teve quatro presidentes em quatro anos: Pedro Paulo Kuczynski (PKK), Martín Vizcarra, Manuel Merino e Francisco Sagasti, que assumiu como interino, enquanto os outros renunciaram ou foram afastados por corrupção. Castillo, que tomará posse no dia 28, será o quinto.
Há muitas semelhanças com o Brasil, como já comentei nesta coluna: a polarização entre direita e esquerda, a devassa nas instituições por uma versão andina da Lava-Jato, políticos presos por corrupção, rechaço à classe política tradicional, descrédito das instituições e dúvidas (falsas) sobre a lisura do processo eleitoral.
Mas a situação lá é pior. Antes mesmo das quedas sucessivas de chefes de Estado, todos os presidentes anteriores são suspeitos de corrupção - além de PKK, Alberto Fujimori, Alejandro Toledo, Ollanta Humala, Alan García, este último se matou quando a polícia chegou a sua casa para prendê-lo.
Castillo chega ao poder em parte na carona de uma rejeição peruana aos candidatos tradicionais, que, de uma forma ou de outra, sempre estiveram ligados à elite política, cultural e econômica de Lima. É o primeiro presidente oriundo das classes populares.
Professor de escola primária, forjado no sindicalismo rural, o eleito era o último colocado nas pesquisas quando a campanha começou. Pouco conhecido nas cidades, conquistou o voto em massa do campo, onde, embora nunca tenha sido eleito para um cargo Executivo (perdeu a única eleição que havia concorrido até então, para prefeito de Anguía, em 2002), fez fama ao liderar uma greve do magistério que ganhou proporções nacionais em 2017.
Alguns o qualificam como extrema-esquerda - Castillo defende a intervenção do Estado na economia, uma reforma da Constituição que enterre de vez a Carta Magna escrita no período de Alberto Fujimori. O que lhe garante o qualificativo "extrema" é, em boa parte, seu histórico no Conare, sindicato que tinha ligações com o Sendero Luminoso, guerrilha maoísta que esteve envolvida em uma guerra civil entre os anos 1980 e 1990 - derrotada por Fujimori, pai de Keiko e preso por crimes de lesa-humanidade durante o conflito.
Castillo é, no entanto, conservador nos costumes: é contra o aborto, contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo, contra a ampliação dos direitos da comunidade LGBT+ e contra o ensino de igualdade de gênero nas escolas.
No aspecto externo, é mais um líder de esquerda (ou extrema-esquerda) a vencer uma eleição na América do Sul. Castillo conseguiu, no Peru, o que Andrés Arauz não garantiu ali do lado, no Equador. O candidato equatoriano havia vencido em fevereiro no primeiro turno, mas o banqueiro Guillermo Lasso acabou levando no segundo.
É cedo para se falar em uma "nova onda rosa", em referência aos governos de esquerda da primeira década dos anos 2000 - com Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil, Nicolás Maduro na Venezuela, Evo Morales na Bolívia, Rafael Correa no Equador, Michelle Bachelet no Chile, José Mujica no Uruguai, Fernando Lugo no Paraguai e o casal Kirchner na Argentina. Mas com Alberto Fernández na Casa Rosada, Luis Arce no Palácio de Quemado e agora Castillo na Casa de Pizarro (além do autocrata Nicolás Maduro entronado em Caracas), há sinais de ressureição da esquerda no poder na região.