Em 2006, auge do bolivarianismo na América Latina, fui enviado por Zero Hora para cobrir a eleição presidencial peruana que opunha Alan García, candidato da centro-direita, e um até então desconhecido ex-militar chamado Ollanta Humala, estrela em ascensão na política graças à bênção do padrinho Hugo Chávez. Aliás, aquela era a cereja do bolo da cobertura: o presidente venezuelano esticava seus tentáculos pelo continente, financiando campanhas eleitorais com petrodólares da hoje falida PDVSA e influenciando regimes de esquerda e centro-esquerda.
Foi uma campanha suja aquela do Peru, com estratégias de baixo nível que envolviam acusações pesadas contra familiares dos candidatos e ameaças de atentados extremistas. García, que se matou nesta quarta-feira (17) no instante em que seria preso, e Humala, o afilhado de Chávez, pareciam se odiar diante das câmeras. O primeiro acabou vencendo a eleição. Governou o Peru pela segunda vez, de 2006 a 2011. Humala só chegaria à Casa de Pizarro cinco depois.
Quis o destino e suas ironias que os antigos inimigos políticos que naquela eleição apresentavam-se como baluartes da ética fossem, anos depois, "hermanados" pela corrupção.
Iniciada no Brasil em 2014, a Lava-Jato chegou a investigar crimes de colarinho branco em mais de 40 países. A maioria das apurações está na América Latina: no Panamá, o governo proibiu a Odebrecht de participar de licitações; o Equador bloqueou R$ 40 milhões em pagamentos de serviços à empreiteira; em El Salvador, há suspeitas de pagamento de caixa 2 na campanha de Mauricio Funes, eleito presidente em 2009 e hoje exilado na Nicarágua.
Mas há casos também do outro lado do Atlântico: em Portugal, investigadores têm cooperado com a Lava-Jato em suspeitas de ligações entre a Odebrecht e o ex-primeiro-ministro José Sócrates, preso em 2014 acusado de corrupção; e na África, existem suspeitas em Moçambique e Angola.
Ainda que tenha se espraiado por três continentes, em nenhuma outra nação os investigadores foram tão a fundo quanto no Peru. Além de García e Humala, os ex-presidentes Pedro Pablo Kuczynski (2016-2018) e Alejandro Toledo (2001-2006) tiveram prisão decretada por corrupção envolvendo empreiteiras brasileiras. Toledo está foragido nos Estados Unidos. Isso significa dizer que TODOS os ex-chefes de Estado eleitos pelo povo que governaram o Peru na era moderna — após o fim do regime militar em 1980 — enfrentam processos judiciais.
Mais do que isso: além dos quatro ex-presidentes, também tem problemas com a Justiça a ex-candidata Keiko Fujimori. Primogênita de Alberto Fujimori (preso, mas bem antes da era Lava-Jato), ela não chegou à presidência. Perdeu para Humala em 2011, mas _ ironia de novo _ participou dos conluios criminosos, assim como o ex-adversário. Foi presa em outubro do ano passado acusada de ter recebido caixa 2 da Odebrecht para a campanha.
A Lava-Jato colocou no mesmo saco políticos de diversos matizes ideológicos: tanto no Peru de García e Humala quanto no Brasil, direita e esquerda latino-americanas "hermanaram"-se na corrupção.