Precisamos falar sobre o Peru. Não apenas porque a ascensão do esquerdista Pedro Castillo provoca desconforto entre os setores conservadores na América Latina, mas principalmente porque, como fato novo da política do continente, abre uma folha em branco de perspectivas para uma nação vizinha que guarda semelhanças com o Brasil. Já comentei aqui na coluna lições que o Peru de hoje tem a ensinar sobre o Brasil de amanhã, mas não custa lembrar paralelos:
- O Peru foi o que mais sentiu os reflexos da Lava-Jato, com quatro ex-presidentes envolvidos em esquemas de corrupção com a brasileira Odebrecht.
- A Lava-Jato peruana produziu uma devassa na classe política, sem, no entanto, trazer renovação - basta ver a ascensão de Keiko Fujimori, representante da velha política, que quase foi impedida de concorrer porque é processada e foi presa por corrupção.
- Fenômeno dos tempos atuais, o país vive uma polarização sem precedentes entre direita e esquerda.
- Como Donald Trump - e possivelmente como vai ocorrer em 2022 no Brasil -, a chapa derrotada alardeou fraudes na eleição e se negava a reconhecer a vitória do adversário. Tanto no caso americano quanto no peruano, porém, as autoridades eleitorais garantiram a lisura do pleito.
Dito isso, também precisamos falar sobre Castillo, o primeiro presidente de origem pobre do Peru, professor de escola rural e líder sindical, até agora, sem experiência em cargos públicos. O mundo olha para o recém-empossado como olhou para o Brasil que elegeu Luiz Inácio Lula da Silva em 2002. Com desconfiança. Na campanha, Castillo era um azarão entre 18 candidatos, mais um sinal da fragmentação política provocada pela descrença na classe política e pelos escândalos de corrupção. Castillo fez promessas que o aproximavam de Hugo Chávez e Nicolás Maduro, como a convocação de uma Assembleia Constituinte e a nacionalização das empresas de mineração, base da economia nacional, o que, aliás, nos lembra também de Evo Morales.
Castillo inclusive tomou posse na quarta-feira (28) resgatando símbolos da América andina, como o fizera o boliviano. Uma de suas promessas é de governar fora da Casa de Pizarro. A sede da presidência remete ao conquistador espanhol Francisco Pizarro, que conquistou Cajamarca, traindo o imperador Atahualpa, e subjugando, depois, o império inca, em Cuzco. Já passou da hora de países latino-americanos se reconectarem com suas origens. Castillo vestia trajes tradicionais dos povos indígenas e usava o chapéu branco típico da região de Cajamarca, onde nasceu. Mas só as aparências não são suficientes.
Apesar da retórica, a verdade é que o novo presidente é uma incógnita. Pode ser Evo Morales, mas seus assessores já não falam mais que haverá nacionalização ou desapropriação de empresas. Pode ser Hugo Chávez, mas só a proposta de Constituinte é pouco para julgar uma guinada autoritária. O Chile, diga-se de passagem, tem feito um processo de reforma constitucional para sepultar a Carta Magna de Augusto Pinochet que é exemplo. Não é porque Castillo quer superar a era Alberto Fujimori que estaria disposto a virar um autocrata para se perpetuar no poder - isso, só o tempo dirá.
No discurso de posse, ele deu um recado para tranquilizar os mercados, inclusive com promessa de manter o presidente do banco central no posto. Castillo tem na mão um voto de esperança, representa uma grande porção da população alijada das grandes decisões do país por séculos. Também incorpora uma promessa de nova política diante de eleitores cansados de uma elite corrupta de Lima. Mas terá dois caminhos: virar à extrema esquerda, emulando um projeto falido, como o da Venezuela, ou buscar alternativas para um país que seguia crescendo não fosse a pandemia. Nos últimos anos, a pobreza no Peru caiu de 60% para 21%. Mas, desde que o coronavírus tornou o país o recordista per capita de mortos por coronavírus no mundo, a economia despencou 11%.
Há desafios externos - conquistar confiança dos vizinhos e investidores é o primeiro deles - e internos, como a legitimidade. Ele ganhou de Keiko por uma diferença de apenas 44 mil votos. A curto prazo, deve mostrar que tem vida própria. O presidencialismo peruano tem toques de parlamentarismo, onde existe a figura de um primeiro-ministro. Castillo preferiu assumir sem indicar o ministério, mas sofre pressão do líder de seu partido Perú Libre (de formação leninista-marxista), Vladimir Cerrón, para indicar um bloco mais à esquerda. O presidente prefere um gabinete moderado. A escolha já será um bom sinal da direção que o país irá trilhar.