* Texto publicado em Zero Hora no espaço do colunista David Coimbra, que está em férias.
Primeiro dia útil do ano, e a fila da vacinação contra a covid-19 é grande em uma das farmácias conveniadas, em Porto Alegre. Minha senha é a 23. Antevendo a demora, uma senhora pede para eu guardar o seu lugar, enquanto vai ao banco. Aceno com a cabeça. Ela retorna, e a fila nem se mexeu. Uma cliente faz as vezes de porta-voz para os demais:
- Estão passando as pessoas que farão teste de PCR primeiro.
Outra acrescenta:
- Eu era a quarta, e estou há uma hora e meia esperando.
A senhora a minha frente pede para eu guardar, de novo, seu lugar na fila.
- Sabe como é? Vou aproveitando para pagar contas.
Penso sobre quantas tarefas eu precisaria também estar cumprindo. Mas vacina é prioridade.
Com a demora, muitos desistem, inclusive eu. Vinte minutos depois, estou em outra fila, bem maior, agora no shopping. Próximo, um senhor vende capinhas para proteger a carteira de imunização.
- Vem aí a quarta dose! Você vai precisar da sua carteira para entrar em Santa Catarina, em lojas, em restaurantes! Não dobra, não amassa, não molha - anuncia.
A propaganda é a alma do negócio, penso. Vim de SC dias atrás, e em nenhum lugar me pediram o comprovante. E a quarta dose? Só se for em Israel. Por aqui, apenas 12,43% da população recebeu a terceira injeção.
A fila da vacina é o microcosmos do Brasil: aqui se encontram eleitores de Jair Bolsonaro que, por via das dúvidas e a despeito do que diz o presidente, decidiram se vacinar, ao lado de pessoas com máscara com a foto de Lula. Há os palpiteiros a respeito da política, analistas de plantão sobre o possível fim da pandemia e, claro, os aspirantes a técnicos de futebol.
- Temos de ter fé em Deus e dar um voto de confiança para a ciência - diz um senhor atrás de mim.
- Dia desses, um "cientista" duvidou da vacina - acrescenta o outro. - Cancelaram ele nas redes sociais - afirma outro.
- Agora, tem a polêmica das crianças - retruca o primeiro.
- Isso eu tenho dúvidas - pondera o segundo.
E, então, eles passam a lembrar:
- Antigamente, a gente levava vacina de pistola e ninguém questionava - diz um deles. - Lembra daquelas pistolas? Acho que era contra o sarampo.
- Se lembro! A gente olhava a pistola e já ficava com medo. Tomei no quartel. Ninguém questionava.
Um dos senhores se dá conta de que pode passar à frente. Fala com um funcionário, e, assim, pula umas 15 pessoas. Lembro do primeiro dia em que levei minha mãe para a segunda dose. Também era um shopping. Havia banda de música, e me emocionei. A vacina era a luz no fim do túnel, o antídoto contra essa praga que mudou nossas vidas. Na minha segunda dose, fiz selfie, escolhi uma camiseta para aparecer na fotografia com uma inscrição contra fake news, e postei na timeline do Instagram. Agora, a terceira dose, a selfie foi apenas para os stories, cuja exibição dura apenas 24 horas. Não há banda de música, sem pompa nem circunstância. Vacinar passou a ser mais um dos compromissos, questão de agenda, obrigação. Naturalizei a vacina? Que assim seja. E que venha a quarta dose.