Há muito tempo que países disporem de processos eleitorais não lhes é garantia de democracia.
Saddam Hussein costumava ser reeleito presidente do Iraque com 100% dos votos - e ai de quem votasse contra.
Bashar al-Assad, na Síria, sempre foi um pouco mais comedido: ao menos disfarça alguns votos contrários a sua candidatura para ganhar alguma legitimidade interna e externa.
Na bolivariana Venezuela, de Hugo Chávez a Nicolás Maduro, sempre houve eleições, e, mesmo assim, a nação sul-americana foi caindo, aos poucos, no autoritarismo.
Não é muito diferente com a Nicarágua.O país que inspirou a esquerda mundo afora nas décadas finais do século 20, com a Revolução Sandinista, é hoje motivo de constrangimento.
Daniel Ortega, que poderia ter encerrado a carreira como herói ao comandar a derrocada do autoritarismo de Somoza, na década de 1970, sucumbiu ao mal que aflige os outrora guerreiros de libertação nacional: a conversão em déspotas.
A Revolução Sandinista foi antiditatorial, antidinástica e pela liberdade da Nicarágua.
Ortega, como Fidel Castro, em Cuba, se apropriou da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), e a transformou em um braço político da família. Hoje, todas as instituições de Estado estão subordinadas a sua vontade e a de sua mulher, Rosario Murillo, sucessora informal, na vida e na morte.
Em que momento Ortega se converteu em autocrata? É difícil dizer. À direta ou à esquerda, a democracia morre aos poucos. Mas, no caso nicaraguense, ao menos se pode dizer que a situação ficou bem grave a partir do momento em que o ex-comandante voltou ao poder, em 10 de janeiro de 2007.
A independência entre os Poderes da República morreu ali.
O neoditador latino-americano "ganhou", no último domingo (7), mais uma eleição. Como nas últimas, foi um pleito de fachada, com cartas marcadas e sem reconhecimento internacional. O resultado oficial: 75% dos votos pró-Ortega. Os outros 25% ficaram com candidatos marionetes do governo, supostamente de oposição, no reino de faz de contas de Ortega. Todos, entretanto, de alguma forma são próximos do governo.
Jornalistas internacionais foram proibidos de entrar no país. Nos meses que antecederam a eleição, mais de 30 políticos foram detidos pelo regime. As semelhanças com a Venezuela são muitas: Ortega domina os três poderes, milícias cercam, protegem o Executivo, dinamitam dissidências, e a oposição real tem se omitido dos pleitos sob o argumento de que não reconhece a lisura da eleição - o que, como na Venezuela de Maduro só contribuiu para a consolidação da ditadura. Como na Venezuela (que realiza eleições no ano que vem), Ortega fechou um acordo, prometendo eleições limpas - o que não ocorreu no caso nicaraguense.
Como em toda ditadura - de esquerda ou de direita -, o argumento central para a imposição da força é a soberania do povo, a independência, em uma corruptela do verdadeiro sentido das expressões. Por isso, usa-se o inimigo, a ameaça à pretensa segurança nacional. Em vigor, está a chamada Lei de Defesa dos Direitos do Povo à Independência, à Soberania e à Autodeterminação para a Paz. Nos dois resolutos artigos da legislação, aparecem comportamentos considerados "traição à pátria" como termos vagos: "demandar, exaltar ou aplaudir a imposição de sanções contra o Estado da Nicarágua e seus cidadãos". Ou seja, no amplo arco do que pode ser considerado crime de lesa-pátria estão palavras abertas demais, ao bel sabor da interpretação dos algozes da democracia.
Sete meses atrás, Ortega decidiu que era melhor evitar surpresas no domingo (7). Prendeu os sete candidatos opositores e manteve apenas aqueles que não apresentavam risco real. O alvo mais famoso é Cristiana Chamorro, filha da ex-presidente Violeta Chamorro. Não à toa, talvez a única com força suficiente de desbancá-lo do poder. A acusação, sem provas contra Cristiana, é de lavagem de dinheiro, apropriação e retenção indébita e falsidade ideológica.
Assim, desde o começo do ano, Ortega, os nicaraguenses e o mundo sabiam que, nesta segunda-feira (8), o déspota centro-americano acordaria com um novo mandato a seu dispor. E a Nicarágua tendo dado um passo a mais no pântano da ditadura.