Maha Mamo passou 30 anos lutando pelo direito de existir legalmente. Seus pais eram sírios, mas o casamento deles não era reconhecido no país porque tinham religiões diferentes. Maha nasceu no Líbano, porém, o país só considera cidadãos se o pai do recém-nascido for libanês.
Assim, ela viveu em um hiato jurídico que obrigava sua mãe a peregrinar por escolas, nas quais a menina não era aceita porque não tinha documentos. Maha também não tinha acesso a serviços de saúde nem podia viajar para o Exterior. Na adolescência, graças a uma autorização especial, migrou para o Brasil com os dois irmãos (Souad e Edward), na tentativa de iniciar uma nova vida. Em 2017, a Lei de Migração brasileira incluiu a apatridia com a facilitação de naturalização. Maha e Souad foram reconhecidas como cidadãs brasileiras. Edward foi morto durante tentativa de assalto em Belo Horizonte, cidade que os acolheu, sem alcançar o sonho de ter um documento de identidade.
Formada em Sistemas de Informação e com mestrado em Administração, Maha trabalha hoje fazendo palestras sobre a situação de milhares de pessoas que não têm nacionalidade. No livro Maha Mamo: a Luta de uma Apátrida pelo Direito de Existir, ela conta sua experiência, que deve virar filme, com direção de Bruno Barreto. Em setembro, ela palestrou em evento do Centro de Atendimento ao Migrante (CAM) e da Província Maria Mãe dos Migrantes, de Caxias do Sul.
De forma simples, o que é apatridia?
Quando você nasce, você consegue a nacionalidade de duas formas: pela terra, como no Brasil ou nos EUA. Se você nasce no Brasil, você é brasileiro. Se nasce nos EUA, é americano. Ou então pelo sangue, como a maioria dos brasileiros que é descendente de alemães, italianos, libaneses. Você consegue essas nacionalidades mesmo sem falar a língua, sem nunca ter ido para esses países, porque ela foi passada pelo sangue. Porque o pai do seu pai era libanês, você virou libanês. Mas há milhares de pessoas que não conseguem nacionalidade por meio desses jeitos, não se encaixam em nenhuma dessas duas situações. Veja bem, se você nascesse na Itália, você não seria automaticamente italiano. Se nascesse na França, não seria automaticamente francês. As leis foram escritas por seres humanos. E seres humanos erram. Eles erraram e deixaram algumas pessoas nessa situação. É muito diferente de ser refugiado. O refugiado, até certo ponto da vida, estava vivendo uma vida normal, com documento. Aí, houve uma guerra, e ele precisou fugir, mas ele fugiu com documento. Então, ele existe. O apátrida é como uma sombra, vive sem ter certidão de nascimento, não consegue sair do país, enviar nada pelo correio para ninguém, não consegue provar quem você é. Você não consegue viajar. Você morre sem certidão de óbito. Você vem e vai sem a mínima dignidade. É muito fácil as pessoas se identificarem com pobreza, porque sabem o que é. É fácil entender o conceito de refugiado, também. Mas, quando você explica o que é ser um apátrida, dizendo que essa pessoa não tem direito nenhum, não pode estudar, trabalhar, comprar um chip de telefone ou entrar em uma boate para dançar, dizer que você não existe, a pessoa para e pensa. Se ela quiser ouvir mais, ela entende o que é ser apátrida. Quem acha que já é muita informação, para e fala: “Ok, boa sorte”.
Após toda sua luta por reconhecimento, algo mudou na legislação da Síria e do Líbano com relação aos apátridas?
Infelizmente, não. Não mudou nada. Ainda hoje, uma mulher no Líbano e na Síria não consegue passar a nacionalidade para os filhos. O casamento inter-religioso, na Síria, ainda é ilegal. Líbano e Síria ainda não dão nacionalidade a pessoas que nascem lá. Tudo vai depender do seu pai.
O casamento inter-religioso, na Síria, ainda é ilegal. Líbano e Síria ainda não dão nacionalidade a pessoas que nascem lá. Tudo vai depender do seu pai.
Você abriu mão de alguns sonhos: de estudar medicina, de ser jogadora de basquete profissional. Mas em que momento, quando criança, você se deu conta de que algo estava errado?
O choque mesmo, na infância inicial, não tive. Enquanto criança, eu não sabia nem o que era documento. Na escola, não me sentia discriminada. Comecei a perceber a diferença na adolescência. Eu tinha entre 13 e 14 anos. Fui recrutada para jogar basquete por uma equipe profissional. Pensei: “Essa equipe tem jogadoras estrangeiras e nacionais”. Se não sou considerada libanesa, por que não posso ser considerada estrangeira? Esses questionamentos começaram a surgir. E também sou escoteira. A turma de escotismo foi viajar para a Jordânia, e eu não pude ir. Foi uma frustração que começou a aumentar.
Que categorias de apátridas existem além da sua situação, cuja cidadania foi rejeitada porque seus pais tinham religiões diferentes?
Hoje, há 10 milhões de pessoas apátridas. Cada uma tem uma história. A maioria das situações se deve a leis discriminatórias. Hoje, em 24 países uma mulher não consegue passar a nacionalidade para os filhos. Isso é um fator que gera muita apatridia. Há muitas guerras, e, nesses lugares, a necessidade dessas pessoas é muito mais de comer, de sobreviver do que de registrar um filho e ter documento. A cada 10 minutos, nasce um apátrida em campos de refugiados. Há pessoas que viviam nos países da antiga União Soviética. De repente, dormiram e, quando acordaram, o país não existia mais. O passaporte que tinham não servia para mais nada. Sem querer, viraram apátridas. Há países nos quais o governo discrimina algumas pessoas de determinadas tribos ou religiões. Essas minorias estão muito mais em risco de apatridia.
Em que países as leis são mais excludentes?
Em cada país é diferente. Cada lei é diferente. Por exemplo, entre Costa Rica e Panamá, havia muitas pessoas que trabalhavam na zona rural, que nunca foram registradas e não sentiam necessidade disso. Trabalhavam em campos de café. Quando os governos desses dois países perceberam essa necessidade, porque não sabiam nem quantas pessoas moravam lá, criaram um programa, foram até as fronteiras e começaram a registrá-las. Outro exemplo: a Colômbia viu que havia muito fluxo de refugiados venezuelanos chegando. Esses venezuelanos estavam tendo filhos, e essas crianças não eram nem colombianas nem venezuelanas, mas apátridas. Uma mulher conheceu minha história e escreveu um projeto. A partir disso, o governo deu nacionalidade para 25 mil crianças venezuelanas que nasceram na Colômbia. Hoje, no Brasil, ainda há muitas crianças em zonas rurais, de povos indígenas, que não foram registradas, que estão vivendo sem documento. Com a pandemia, isso ficou mais claro. Como iria tomar vacina, se não tinha cartão de vacinação? Como vai receber auxílio emergencial se não tem documento? São casos de pessoas que não existem no Brasil.
Como está o Brasil em termos de legislação sobre apátridas?
Hoje, o Brasil é um exemplo para o mundo. Mas falta muito conhecimento sobre o assunto. Quando você nasce no Brasil, você é brasileiro. Muitas vezes, as pessoas pensam: “Para que vou fazer documento, amanhã ou depois registro meu filho”. Você não sabe o risco que existe para essa criança. Ela não é apátrida, mas está em risco de apatridia. Por isso, hoje faço o que faço, palestras, entrevistas. Porque é importante explicar. O fato de ter documento, algo banal, que você às vezes não pensa duas vezes quando vai sair, que coloca na sua carteira antes de sair, é um sonho para muitas pessoas.
A própria palavra “apátrida” não é muito conhecida para muitas pessoas.
É desconhecida. Infelizmente, a palavra, o fenômeno, as pessoas são muito desconhecidas.
Você já voltou ao Líbano ou à Síria após ter recebido a nacionalidade brasileira?
Nunca estive na Síria, mas ao Líbano voltei em 2019 para dar uma entrevista para a BBC. Fiquei alguns dias, foi rápido, pois tinha outro compromisso. Ainda não voltei realmente, para encontrar todo mundo, para ver tudo.
Qual é o seu sentimento em relação a esses dois países, que não lhe deram nacionalidade?
Eu amo o Líbano. O Líbano me deu acolhimento por 26 anos, mesmo sem me dar existência. Nasci, cresci, meu pai está lá, meus amigos estão lá. Toda a minha vida está lá. Consegui minha educação lá, mesmo sem ter o que eu queria, mas, pelo menos, consegui alguma coisa. Sempre falo que o Líbano é a minha mãe, que me deu o nascimento. E o Brasil é onde escolhi viver minha vida inteira.
Hoje, sou livre, posso ir onde eu quiser, voltar, fazer o que quiser, sabendo que, além de existir legalmente, eu pertenço a um país.
O que a palavra “existir” significa para você? Ganhou uma nova concepção depois de ser reconhecida?
Sim, porque, além de existir nos documentos, de ser uma pessoa que existe legalmente, tive todos os meus direitos reconhecidos. Nasceram esses direitos em mim e por mim. Hoje, sou livre, posso ir onde eu quiser, voltar, fazer o que quiser, sabendo que, além de existir legalmente, eu pertenço a um país. Tenho essa proteção, seja onde for nesse mundo sou protegida. Posso ir à embaixada brasileira, bater à porta, e haverá alguém de confiança. Essa palavra, “existir”, para mim, pesa muito.
Quando você chegou ao Brasil, trabalhou entregando panfletos, mesmo tendo mestrado no Líbano e falando quatro idiomas. Essa é uma realidade de muitos migrantes que chegam com alto grau de qualificação, mas não encontram mercado de trabalho em suas áreas.
Foi horrível para mim. A Europa ajuda os refugiados, dá dinheiro para que fiquem em casa, mas não os integra à sociedade. Você não tem carteira de trabalho, demora para ter documentos, para ter liberdade de trabalhar. O Brasil, por outro lado, te dá carteira de trabalho, CPF. Mas não te ajuda a se integrar à sociedade. A dificuldade de um refugiado, migrante ou apátrida, aqui no país, é muito maior do que aquela enfrentada pelos brasileiros, que falam a língua. A integração ao mercado de trabalho é muito difícil. Comecei a revalidar meu diploma em 2017 e até hoje não saiu. Não é uma coisa simples. Não tenho oportunidades, infelizmente. As pessoas ainda têm preconceito, não te dão oportunidades, não te ajudam. Você só consegue trabalhos básicos. Entregar panfletos foi meu primeiro emprego. Com essa renda, eu conseguia viver, pagar contas, comer.
Como foi ver a sua foto em um documento pela primeira vez?
Foi no Líbano, quando peguei o documento de viagem. Não era passaporte. A gente chama de documento de viagem. Quando vi minha foto, meu nome, foi uma sensação muito gratificante. Parecia o começo de uma vida nova.
O que você deixou para trás?
Meu pai, minha mãe, meus amigos, minha vida, meu trabalho, minha zona de conforto. Troquei isso pelos meus direitos. A existência legal não é só ter documento, pensar “agora, virei brasileira, uau!”. Não! É muito mais pela minha segurança, minha liberdade de ir e vir. Consigo entrar em qualquer hospital sem medo. No Líbano, tínhamos medo até ao ver uma blitz da polícia. Se explodisse uma bomba, meu medo não era de morrer. O medo estava relacionado com os policiais: “Como vou conseguir escapar sem ser acusada de terrorista? De ter armas, drogas, de ser ilegal?”. Minha existência era ilegal. Vim para o desconhecido Brasil porque eu não tinha opção. Não foi uma escolha. Foi uma obrigação.
O Brasil lhe deu a cidadania, mas a insegurança aqui lhe tirou o seu irmão, assassinado durante um assalto. Há um sentimento ambíguo em relação ao país?
Eu acredito em Deus. Se ele não morresse no Brasil, ia morrer dormindo na cama dele no Líbano, ou quando passasse por uma rua e fosse atropelado. A maneira como ele morreu foi muito ruim. A insegurança que existe no Brasil a gente conhecia antes de vir. A gente optou por vir. Não foi o Brasil que tirou meu irmão. Foram esses adolescentes que não foram educados, que não foram instruídos, que talvez não tiveram pais, não sei o que passaram. Mas a missão dele nesse mundo foi trazer a gente com segurança do Líbano para o Brasil. A insegurança existe. A gente deve combatê-la com educação, com reformas, tirando a arma e dando uma caneta na mão dessas pessoas. Mas não sou eu que devo fazer isso. Não era ele que devia fazer isso. Não mudou nada em relação ao que penso sobre o Brasil, mas a sensação é ruim. Muitas pessoas falam: “Olha como ela fala sobre o Brasil, com orgulho, mas ela não sabe nada sobre o país porque não vive aqui”. Elas não conhecem minha história, não sabem que a gente viveu até essa situação no Brasil. Sou muito orgulhosa ao dizer que sou 100% brasileira. Eu me identifico com cada brasileiro que perdeu alguém que ama, que perdeu alguém da família em um assalto.
Como brasileira, como vê a imagem do país hoje?
Se você perguntar a qualquer pessoa sobre o Brasil, falam de futebol, samba e insegurança. Desde 2014, já viajei por mais de 25 países, encontrei presidentes, governadores, ministros, sociedade civil, executivos, famosos. Quando falo do Brasil, me refiro a pessoas que trabalham no Ministério da Justiça (responsável por avaliar a concessão de cidadania), que são capacitadas para estarem nesses caragos, que têm estudo, sabem com quem estão lidando, o que estão fazendo, que, independentemente de governo, essas pessoas não mudam. Então falo com muito orgulho. Falo com muito orgulho do Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados), da sociedade civil. Hoje, estamos vivendo desafios muito grandes: pandemia, vacinação, mas não só no Brasil, e sim no mundo inteiro. Meu desejo é que o Brasil seja o primeiro no mundo, seja o melhor. Há vezes em que é melhor ficar calado e aceitar as críticas. A gente não consegue combater a ciência, os números. Eu ouvi o discurso de Bolsonaro (na Assembleia Geral da ONU) e não sei quantas mentiras ele conseguiu falar em cinco minutos. Fico triste quando ouço alguém de outro país falar: “Nossa, ele está achando que somos burros”. São quatro anos (de governo), depois podem ser oito. A fase é difícil para se viver, mas a gente tem de sobreviver. A gente que tem de falar do Brasil de um jeito bom. Eu me considero hoje um exemplo bom para a imagem do Brasil. Então, é isso que eu tento passar para as pessoas.
Depois de todas essas experiências, pode responder sobre isso: Como ter resiliência?
Onde eu busco inspiração? No amor. Hoje tenho o amor da minha vida, que, para mim, mudou muitos conceitos, perspectivas. Na pandemia – e eu tive covid-19, passei muito mal por causa do vírus –, o apoio dessa pessoa, a simples presença dela, me fez superar muitas coisas. É no amor, na conversa, na fala, na palavra, na simpatia que encontramos resiliência. Colocar-se no lugar do outro é importante. Uma vez eu ouvi: no Titanic, todos estavam no mesmo navio, mas nem todos se salvaram do mesmo jeito. É como a situação do Brasil. Há muitas pessoas passando por dificuldades, mas cada uma é diferente. A gente está passando pela mesma tempestade, mas em barcos distintos. Acredito na esperança de que amanhã vai ser melhor.
Você está liderando uma campanha para arrecadar dinheiro para a causa de um menino chamado Rayan. Por quê?
Hoje, trabalho como palestrante, para motivar e inspirar as pessoas (e-mail mahajmamo@gmail.com). Dia desses, uma amiga de escola veio me procurar e disse: “Sua história inspira muitas pessoas, mas para mim inspirou particularmente. Minha irmã teve um relacionamento fora do casamento. Ficou grávida, virou mãe solteira. Teve a criança e descobriu que estava com câncer. Ela falou: “Quando perdi minha irmã, a única coisa que sobrou nesse mundo é o Rayan”. Hoje, ele tem 13 anos e não tem nacionalidade. Por isso, estou bem confiante de que, se Deus quiser, a gente vai bater a meta, vai conseguir dar nacionalidade para ele (para ajudar no processo legal, contribuições podem ser feitas pelo site vaka.me/2368319).