Jornalistas têm por vezes a ambição de escrever os rascunhos da História. Ou seja, cada texto em potencial pode se tornar fonte primária sobre a qual historiadores se debruçarão para buscar compreender o nosso tempo. Quando ambos os ofícios – jornalista e historiador – são incorporados pelo mesmo profissional, afloram trabalhos que combinam a efervescência do tempo presente e a robustez da interpretação que só o distanciamento histórico traria.
É o que faz Sylvia Colombo, 49 anos, em seu primeiro livro solo, "O Ano da Cólera – Protestos, Tensão e Pandemia em 5 Países da América Latina". Formada em Jornalismo pela PUC-SP e em História pela USP, a paulistana combina na obra a precisão e a objetividade do texto a que o leitor da Folha de S. Paulo está habituado à contextualização equilibrada de quem não se furta de dar sentido ao mosaico de fatos que abalam a região desde 2019.
Como correspondente do jornal paulistano em Buenos Aires, Sylvia é responsável por retratar a América Latina como um todo. Com frequência, é enviada às terras em convulsão. Foi de algumas dessas viagens que nasceu a ideia do livro, antes de o planeta submergir na pandemia. Sentada com colegas jornalistas em um restaurante em La Paz, Bolívia, ao final de uma jornada desgastante a dois dias do conturbado processo eleitoral no qual o então presidente Evo Morales buscava o quarto mandato, ela recebeu a informação de que, no Chile, Sebastián Piñera declarara estado de emergência. Aqui, um aparte: ao final de dias cansativos de uma cobertura, é comum jornalistas de diferentes veículos confraternizarem, deixando de lado a concorrência pela notícia exclusiva para um bom papo, em que as histórias de vida e a saudade de casa afloram. O front de uma cobertura forja amizades para uma vida. Eu conheci Sylvia em uma dessas coberturas, em Caracas, na Venezuela em convulsão, em 2019.
Voltando a La Paz. Na mesa, estavam reunidos jornalistas que tinham acabado de cobrir as manifestações no Peru, por ocasião da crise que culminou na dissolução do Congresso pelo então presidente Martín Vizcarra. Outros vinham do Equador, cobrindo os protestos em que indígenas se rebelavam contra o aumento do preço dos combustíveis. Com a mensagem recebida por um dos colegas no celular, a cabeça de repórter de Sylvia anteviu o que viria. A volta para casa, após pular de capital em capital latino-americana, seria adiada.
A ebulição social no Chile, por anos modelo de estabilidade no continente, era sintoma de um mal-estar latino-americano por vezes invisível à maioria das pessoas. Ainda que rejeite colocar as crises de 2019 para cá no mesmo balaio, Sylvia admite no livro pontos de contato. Os episódios, segundo ela, estão conectados ao passado colonial em comum e aos períodos ditatoriais que deixaram chagas abertas que ainda latejam.
Porém, como cada momento é fruto de uma conjuntura e de um contexto específicos, a jornalista decidiu organizar o livro conforme os episódios vividos em cada nação. São abordados Chile, Bolívia, Venezuela, Argentina e Uruguai, mas há outros que se encaixariam no mesmo recorte, como Peru, Equador e Paraguai. Aliás, enquanto conversávamos por telefone para a entrevista ao lado, a Colômbia, outro exemplo de nação com relativa estabilidade após o acordo de paz entre o governo e a guerrilha das Farc, voltava a explodir. Um projeto de reforma tributária do presidente Iván Duque abriu a caixa de Pandora colombiana, trazendo de volta fantasmas do passado, como guerrilheiros, narcotraficantes, disputas políticas e a sempre presente desigualdade social aprofundada pela pandemia.
Escrever sobre América Latina é lidar no dia a dia com a polarização política, algo que também hermana as nações e reflete-se no filtro que enviesa a percepção de leitores. Sylvia dribla essa armadilha com duas receitas saudáveis do bom jornalismo. A primeira é de reportar os fatos in loco, vantagem de quem está no epicentro dos acontecimentos, o que traz à tona um relato mais próximo da realidade. A segunda é a fuga das generalizações. Para ela, a “ideia de que a Argentina está virando uma Venezuela”, por causa do retorno do peronismo, e de que os uribistas (seguidores do ex-presidente Álvaro Uribe) devem seguir comandando a Colômbia para que o país não seja entregue “ao castro-chavismo” (expressão de Uribe que corresponde a “virar uma Venezuela) são afirmações genéricas e absurdas que demonstram ignorância e má-fé.
O ano da cólera seria 2019, quando várias populações latinas se insuflaram. Mas logo em seguida, viria o ano da peste, 2020, que aprofundaria os dramas sociais em um continente onde morrem muitos e vacinam-se poucos. Como destacava Eric Hobsbawm, nem sempre os séculos são findados por datas redondas. O século 20 não teria começado, segundo ele em 1901, por exemplo, mas com seu primeiro grande acontecimento, a I Guerra Mundial. De forma semelhante, “o ano da cólera”, retrato fiel do nosso tempo, seguiu em 2020 e continua em 2021.
"Nossas histórias estão marcadas por chagas comuns", analisa Sylva Colombo
Nesta entrevista, a jornalista Sylvia Colombo, correspondente da Folha de S. Paulo para América Latina, conta, de Buenos Aires, onde mora, os bastidores da confecção do livro, fala de política na América Latina, das crises que hermanam os países e do desafio de escrever uma obra sobre um tema que continua pulsante.
Cada vez que eu falo para familiares ou amigos "Estou indo para a Colômbia, para o Equador, para a Venezuela", a reação é sempre: "Cuidado!". Porque há a ideia de que você está indo para um lugar terrível, perigoso. Nesse sentido que não gosto (de generalizações).
No livro, você rejeita o rótulo de que existe uma só América Latina, ao mesmo tempo não é coincidência que vários países do continente vivam crises. O que os une e o que os separa?
Quando eu digo e repito que não gosto de generalizações do tipo "Tudo o que acontece na América Latina é assim" é porque isso é uma grande generalização que tende, principalmente no Brasil, a se tornar um rótulo negativo. "A América Latina está sempre em crise" ou "A América Latina não dá certo" ou "Democracia na América Latina não pega". Esses tipos de considerações fazem parte de uma cultura da elite intelectual brasileira, cultivadas desde o final do século 19, de quando éramos, em teoria, o Império e olhávamos para o resto da região como se fosse uma baderna, a anarquia absoluta. Só porque tínhamos um rei, nos considerávamos uma parte da Europa, e o resto da América Latina era aquela coisa anárquica, sangrenta, onde as pessoas se enfrentavam. Tanto que se tem essas diferenças dos processos históricos: no Brasil, não houve revoltas pela independência, no resto da América Latina, sim. Então, a ideia que o brasileiro médio tem da América Latina é essa coisa que fica para lá da fronteira do Brasil, onde ninguém se entende direito, que sempre dá confusão e que é manejada por presidentes meio malucos, que estão sempre se matando. Essa generalização, que era feita no século 19, ainda existe hoje, com algumas variações. Esse preconceito brasileiro com o que acontece para lá da nossa fronteira, na nossa região, existe, vem dessa época, e foi ganhando novos contornos. Você como jornalista e correspondente também deve ter enfrentado isso: Cada vez que eu falo para familiares ou amigos "Estou indo para a Colômbia, para o Equador, para a Venezuela", a reação é sempre: "Cuidado!". Porque há a ideia de que você está indo para um lugar terrível, perigoso. Nesse sentido que não gosto (de generalizações). Mas também não gosto da forma como a mídia brasileira em geral tende a colocar tudo no mesmo balaio. Crises como essas, protestos no Chile, eleições com suspeitas de fraude na Bolívia: "Há um problema na América Latina". A gente nunca faz isso com relação à Europa. Você vai falar da revolta dos "Coletes Amarelos" na França, você fala da França. Se vai falar do Brexit, você fala do Reino Unido. Você vai falar da crise do governo espanhol, você fala da Espanha. Nunca alguém generaliza e fala: "A Europa está uma bagunça".
Mas temos um passado comum e que se reflete no tempo presente.
As nossas histórias estão marcadas por chagas comuns: a escravidão, a exploração, o extrativismo, a sociedade hierarquizada de um modo muito identificado com a Igreja Católica, essa ideia de gente de bem e de mal, e mesmo nossos costumes, nossa fé, nossos valores morais são herdeiros dessa mesma História.
Obviamente, estamos em uma mesma região geográfica, tivemos formações históricas parecidas, por conta das metrópoles que nos colonizaram, por conta da inserção da América Latina no mercado capitalista ao longo da História, temos problemas comuns com outros países e passamos por coisas comuns. As nossas histórias estão marcadas por chagas comuns: a escravidão, a exploração, o extrativismo, a sociedade hierarquizada de um modo muito identificado com a Igreja Católica, essa ideia de gente de bem e de mal, e mesmo nossos costumes, nossa fé, nossos valores morais são herdeiros dessa mesma História. Então, obviamente há traços em comum. Mas especificamente nesse recorte de 2019, que é quando começa o livro, houve, de um modo geral, um desencanto das sociedades de alguns países com um modo de poder, o modo de governar um Estado, um Estado que começava a mostrar falhas na entrega de direitos básicos: acesso à educação, à saúde, a aposentadorias, em alguns casos acesso à soberania indígena, casos de Equador, Peru e Bolívia. Isso une os levantes de 2019.
Foi um desafio a mais escrever um livro cuja história ainda está acontecendo? As crises não terminaram, a Colômbia voltou a explodir.
Nesse dia em que estou dando entrevista para vocês (segunda-feira, 17 de maio) também estou escrevendo sobre a eleição chilena, de domingo (16), que tem a ver com esse processo também. Fazer um recorte para um livro é sempre algo arbitrário, e talvez por isso a gente resista tanto em encarar esse desafio. A ideia (do livro) surgiu antes da pandemia, foi o ano em que a gente se conheceu, em 2019, quando houve vários eventos: Juan Guaidó na Venezuela, eleição na Bolívia, a crise no Chile, no Equador, e eu fui a todos esses países. Foi uma experiência meio vertiginosa de chegar a cada lugar e cada um estar efervescente. Pensei no livro pela primeira vez nesse momento, conversei com a editora Rocco, quando nem existia a pandemia. Mas eu mesma conclui: não vou consegui fazê-lo agora. Ou faço as coberturas, ou sento e escrevo o livro. Alguns meses depois, chega o coronavírus, e entendi que poderia ser um momento para refletir sobre essas demandas que ficaram em aberto e que estão se agravando com a pandemia. Por isso, a gente achou que era o momento ideal. E combinou, do ponto de vista pessoal, com o fato de que não pude viajar em 2020 como viajara em 2019, por conta da pandemia. Fiquei mais tempo em casa e pude fazer o livro.
O título ficou muito interessante: o ano dá ideia do recorte temporal, a cólera a dupla mensagem de revolta e epidemia.
A ideia era esses dois sentidos e uma pequena homenagem ao Gabo (Gabriel García Márquez, autor de "O amor nos tempos do cólera"), que é meu jornalista inspirador.
Você lembrou do tempo em que o Brasil era um império. Ao viajar pela região, ainda há a percepção de que o Brasil é imperialista em países como Paraguai e Bolívia, por exemplo? Como os vizinhos olham para o Brasil?
Em alguns países, sim, há isso, até porque faz parte do material escolar deles. Em alguns, isso é inclusive cultivado. No Paraguai, isso ocorre por conta da Guerra do Paraguai, depois isso se reflete nos protestos que existem hoje às vezes por conta da exploração de Itaipu, que os paraguaios sempre acham que os brasileiros estão tirando vantagem. No caso da Bolívia, isso existia mais fortemente antes do governo Lula. Mudou com a amizade entre Lula e Evo e com o fato de o brasileiro ter aceito a nacionalização dos hidrocarbonetos por parte do Evo. Mas acho que não é tanto uma questão de imperialismo. Dos anos 2000 para cá, o Brasil cresceu tão rápido e virou uma potência econômica na região que a ideia era mais de alinhar-se ao país, de admirá-lo. E agora essa seta está se invertendo. Bem aquela trajetória que fez a capa da revista The Economist, com o Cristo Redentor voando e, depois, caindo. Acho que isso é bem visível. Eu moro na Argentina, e as pessoas estão com medo de tudo o que vem do Brasil. Hoje, a gente tem uma situação em que quase todos os países vizinhos estão com as fronteiras fechadas com o Brasil. Teme-se as cepas brasileiras. Faz falta o dinheiro dos turistas brasileiros? Sem dúvida, mas bastou chegar a variante de Manaus ao Paraguai e colapsou o país inteiro. O Brasil causa medo. Por outro lado, tudo o que vem da presidência (brasileira), do poder, as falas, o pitoresco do autoritarismo de Jair Bolsonaro também causa certo constrangimento e estranheza na região.
Historicamente, o Brasil olha mais para Europa e EUA do que para os vizinhos. Por quê?
Volto a minha teoria do século 19: acho que a elite brasileira achava que o Brasil era a Europa a partir do momento em que o rei dom João 6 pisou no Brasil e disse: "Aqui, a partir de agora, é a sede do império português". Passamos a achar que éramos europeus. Na escola, falavam para gente que o fato de a monarquia vir para o Brasil foi o principal responsável por manter a unidade do país. Então, tem todos os valores em torno disso, de que "somos um país europeu deslocado". A partir daí, criou-se uma escola de relacionamento com os nossos vizinhos, que não é nada boa, que gera essa estranheza. Há pessoas que explicam essa distância com relação à América Latina pelo fato de a língua ser diferente. Mas não cola muito porque não são idiomas tão diferentes. Você, que vive no Sul, sabe muito bem como é essa troca nas fronteiras, as pessoas se entendem perfeitamente em Uruguaiana, nas regiões fronteiriças. O jornalismo é um caso crônico contra o qual eu luto. Acho que está melhor hoje em dia, acho que a gente olha com um olhar mais próximo. Os anos 2000, justamente por causa dessa onda - aqui não vai um elogio ao PT ou ao governo do PT, mas a gente precisa reconhecer que houve uma aproximação de forcas políticas de ideologia parecida e que fez com que uns olhassem para os outros: Néstor Kirchner na Argentina, Hugo Chávez na Venezuela, Evo Morales na Bolívia, Lula no Brasil. A troca começou a ser grande por uma decisão política e ideológica deles e aí o noticiário começou a ser um pouco mais voltado para América Latina. Mas isso foi uma gota água no oceano. Quantas matérias você lê sobre o México por semana nos jornais brasileiros? Nenhuma. A Colômbia divide com o Brasil uma fronteira imensa, temos uma população fronteiriça enorme, dividimos uma selva, a Amazônia, e não publicamos o que seria pelo menos pertinente.
A despeito da crise atual do modelo de negócio no jornalismo, América Latina sempre foi pouco coberta pelos veículos globais, um vez que as agências de notícias mantêm suas sedes no Hemisfério Norte. Iniciativas daqui como a Telesur acabaram por incorporar ideologias do governo dominante. Por quê?
A ideia (da Telesur) era boa, mas não fizeram direito. Hoje, é impossível ver a Telesur. Assiste-se cinco minutos e se percebe que não dá, que é carregado de ideologia, de uma visão direcionada que você não consegue assistir.
Ao escrever o livro, como foi equilibrar o lado jornalístico, factual, e de historiadora, que busca a interpretação, a análise?
Primeiro, tenho uma coisa que é inconsciente: quando você tem uma formação em qualquer carreira da área de Ciências Humanas, você pensa de um jeito, desenvolve um arcabouço de interpretação, de crítica do que você está vendo, lendo, reportando, que é meio inconsciente. Não é muito fácil de explicar. Quando vou relatar, obviamente, estou pensando o que causou aquilo, qual o contexto das coisas, mas a parte consciente é aquela que diz que nada é por acaso, tudo tem contexto. E o fato, desde uma idade muito precoce, ainda na universidade, começar a ler muito sobre ideias políticas na América Latina, você acaba vendo que algumas coisas que aparecem na imprensa como grande novidade não o são, do ponto de vista histórico. Estão relacionados a fatos lá atrás. Por exemplo, a regulamentação do uso da produção da maconha no Uruguai. Apareceu midiaticamente como se fosse uma ideia isolada, um fenômeno próprio do Mujica, mas se você conhecer a história do Uruguai, do Batlle Ordóñez (José Batlle Ordóñez, presidente por dois períodos, de 1903 a 1907 e de 1911 a 1915), verá que esse presidente disruptivo que o Uruguai teve no começo do século 20 construiu uma ideia do Estado moderno uruguaio, que é mais igualitário, mais laico e tudo mais, você entende que a decisão da Frente Ampla, do José Mujica, não nasceu do nada, não veio em uma nave espacial e desceu em Montevidéu. Tinha um histórico. A história te dá um arcabouço, um conhecimento prévio das coisas que estão acontecendo, que ajuda a entender a realidade.
Cobrir a América Latina foi por acaso ou você já tinha essa preferência pelos temas da região?
A vida não segue uma ordem muito coerente. Mas acho que sim. Eu gostava muito, desde criança, de ler em espanhol, sobre os povos pré-colombianos. Quando fui estudar história na Universidade de São Paulo, eu me encantei com um curso de História de Ideias Políticas, ministrado por uma professora muito especial, a Maria Ligia Coelho Prado. E foi aí que acendeu a luz e eu falei: "Se eu quero entender de alguma coisa na vida é disso, sobre História contemporânea da América Latina". Mas isso ficou um pouco no ar, porque logo depois comecei a trabalhar na Folha, e fui parar na editoria de Cultura, que gosto muito, na Ilustrada. Surgiu a oportunidade de cargos de edição, de chefia, e eu fiquei muito envolvida nesse dia a dia de Redação, de fechamento de caderno de Cultura, que às vezes tocava em assuntos de América Latina, mas muitas vezes não. Literatura, cinema, era geral. Mas o interesse pela América Latina permaneceu, e comecei a fazer o mestrado, fazer leituras e tudo mais. E quando vi que essa minha etapa como jornalista de cultura já tinha dado para mim, 15 anos nisso, falei: "Agora, quero me dedicar à América Latina". Houve a oportunidade de para Buenos Aires, depois houve uma interrupção em que estudei nos EUA, quando voltei quis continuar me dedicando à América Latina. Primeiro, fui para Colômbia, 2016, passei um ano lá, achava que era um ano importante por causa da assinatura do tratado de paz com as Farc. Quando voltei, já não fazia mais sentido ficar em São Paulo. Queria voltar para Buenos Aires. Obviamente, tudo isso é um longo processo de negociação com a empresa. Negociei minha vinda para cá, e foi aceita.