Número 2 da embaixada do governo interino da Venezuela, reconhecido pelo Brasil, o ministro-conselheiro Tomás Silva está no Estado para acompanhar a chegada de 33 famílias de migrantes que serão alocados em Guaporé a partir desta terça-feira (19).
O diplomata, acreditado pelo Planalto, representa o governo de Juan Guaidó, reconhecido por mais de 60 países como a autoridade legítima da Venezuela - em oposição ao regime de Nicolás Maduro.
Em entrevista à coluna, o diplomata falou sobre a situação dos migrantes no Brasil, o impasse político no país vizinho e as condições de trabalho dos representantes de Guaidó em Brasília - onde a sede da embaixada segue ocupada por funcionários de Maduro, considerados persona non grata pelo Planalto. A seguir, os principais trechos.
Como foi a negociação para trazer as famílias para Guaporé?
Fomos recebidos pelo presidente Bolsonaro e acreditados oficialmente como representantes do governo interino no Brasil em 2019. Desde então, viemos fazendo um trabalho por todo o Brasil. Eu já visitei mais de 20 vezes o Estado de Roraima. Tenho contato pessoal e direto com todos os ministérios que têm interlocução com a Operação Acolhida, que foi muito bem desenhada e que hoje já se fala que poderia ser indicada ao Prêmio Nobel da Paz. Nenhum outro país da região está aplicando o Tratado de Cartagena (sobre refugiados), só o Brasil, graças à Operação Acolhida e a toda essa comunicação interministerial que brinda essa proteção e dá condição de refugiado a todos os venezuelanos que chegam ao Brasil. Já são 320 mil venezuelanos no Brasil, quase 90 mil têm o seu documento como refugiado. A gente só pode agradecer ao Brasil porque o acolhimento tem sido maravilhoso, os venezuelanos se sentem bem recebido aqui. Com essa interlocução que a gente vem fazendo a nível nacional, conhecemos gente maravilhosa, como um grupo sensacional que se chama Virada Feminina, formado por mulheres empresárias que articulam em todo o Brasil e que se preocupa com causas de interesse social. Não é só tirar as pessoas de Roraima e enviar a Salvador ou a outros lugares, porque isso seria tirar o problema de um Estado e enviar a outro. O que está acontecendo no RS é sensacional porque Neura Trevisol, como presidente da Virada Feminina, em conjunto com Blanca Montilla (representante da embaixada em São Paulo e membro da Casa Venezuela), Operação Acolhida e nós, como embaixada, estamos trazendo venezuelanos que já vão chegar com trabalho. Vai chegar o primeiro grupo, mas já está combinado que sejam mais de 165 famílias, que irão trabalhar nesse grande polo da indústria de confecção de roupa íntima em Guaporé. Já vão chegar com trabalho, casa e sendo parte da sociedade, que é o que o venezuelano perdeu. O venezuelano que fugiu da Venezuela saiu porque lá não tinha trabalho, estava passando fome, não tinha remédio. Hoje, quando você consegue trazer um venezuelano para o RS com trabalho, com uma casa, você está dando esperança a ele. Ele está nascendo novamente. Não é só uma questão de interiorizar, é de dar dignidade, ele volta a se sentir membro de uma sociedade.
E as residências também já estão organizadas?
A Operação Acolhida, órgão do governo federal com Exército, controla em Roraima os refugiados. Já existem 11 acampamentos de refugiados. Quando veem as capacidades de alguns venezuelanos, essas empresas de confecção de roupa íntima de Guaporé, que estão precisando de mão de obra, fazem a oferta laboral. Aí, vem um trabalho em conjunto entre esse grupo, a Operação Acolhida, as diferentes ONGs, como a Casa Venezuela, a Virada Feminina, e entramos como embaixada, organizando para que todo esse processo seja harmônico. Eu não conhecia o RS e hoje falo "uau!". Olhando o mapa, imagino um venezuelano que sai da Venezuela com fome, sem remédio, que nunca viajou, de repente é deslocado até o lugar mais ao sul do Brasil. Isso não é fácil para uma pessoa vulnerável. Sua vida está mudando completamente.
Muitos inclusive preferem ficar próximo à fronteira para quando a situação política interna mudar eles retornarem.
Quando chego em Pacaraima (Roraima), na linha de fronteira, minha pele se arrepia só de pensar que posso entrar no meu país. Imagina para esse venezuelano ter de voar sete horas de Roraima para chegar aqui e, ao mesmo tempo, começar uma vida que ele perdeu. A gente só saiu do nosso país porque não tinha condições. A Venezuela é a segunda pior crise migratória do mundo, segundo a ONU. Não tem uma guerra, uma catástrofe natural, tem um regime acusado de narcotraficante, de crime de lesa-humanidade, que está matando o povo de fome por falta de remédio. Hoje, o salário mínimo na Venezuela não representa nem um dólar. A decisão básica de uma pessoa com dois filhos pela mão, ao segundo, terceiro dia sem comida, é fugir. E o Brasil tem sido um grande receptor, e agora o Rio Grande do Sul. Os filhos (dos migrantes) vão poder ter educação. Vão ter acesso a saúde. Não serão uma carga para o Estado. Eles vêm para gerar ao Estado, para contribuir. São empresas que pagam impostos, vendem e geram riqueza para a cidade.
Como está a situação do fluxo com a fronteira fechada?
O fluxo reduziu. O venezuelano, quando pensava em sair para o Brasil, ele já tinha o conhecimento de que quando ele colocava o pé aqui, a Operação Acolhida dava algo importantíssimo, status migratório. O venezuelano que entrava no Brasil em menos de 48 horas já tinha documentos, não era ilegal. Existem alguns venezuelanos que, produto da crise gigantesca, estão tentando entrar no Brasil ilegalmente, coisa que a gente condena. Entrando ilegal não tem o benefício da condição migratória.
Há um impasse na Venezuela. Guaidó tem reconhecimento internacional, mas Maduro detém o poder dos militares. Qual a ideia de vocês para os próximos passos?
Na questão política é simples: existe um ditador que só é reconhecido por cinco aliados do mundo e existe um governo interino que constitucionalmente continua no poder, e continua exercendo funções interinas, e que quase 60 democracias do mundo apoiam e reconhecem. Temos uma pessoa usurpando o poder com armas, ameaças, mortes. Mais de 30 deputados sofrem perseguições políticas. O mundo se impressionou com a invasão do Capitólio nos EUA. E o que fez o regime Maduro na Venezuela? Fez o mesmo. Entraram no parlamento e deputados levaram pancada e quase morreram. A Assembleia Nacional é o último poder legitimamente constituído, com votos. Tudo o que vem depois disso é ilegal. Produto dessa ilegalidade é que o mundo hoje continua reconhecendo Guaidó. Em todas as conversas em que o regime já tentou, quando entra a comunidade internacional (União Europeia, Grupo de Limpa, EUA, Organização dos Estados Americanos), Maduro não aceita é a presença de observação internacional. Se trabalho com meus aliados, todos estão falando que não tem garantias para eleições livres na Venezuela, você não pode participar.
O que vão fazer?
Vamos continuar com a pressão internacional, com a pressão interna, com os protestos, e vamos criar o momento. Essa é uma luta. A democracia é como ar: você acha que não é necessário, mas, quando perde, percebe a importância. A democracia se perdeu na Venezuela. As pessoas achavam que nunca chegaríamos a ser como Cuba, hoje somos pior. Muitos acreditamos que não ia acontecer porque somos um país rico em petróleo, hoje a gasolina mais cara do mundo é a venezuelana. Não temos outro caminho que não seja continuar a nossa luta, trabalhando com os aliados, que são a maioria. Quando Michelle Bachelet (alta comissária da ONU para Direitos Humanos), no informe de 16 de setembro, fala que Maduro é responsável por torturas e mortes diretamente, você entende do que estamos falando. Quando a Corte Penal Internacional começa o processo para acusar formalmente Maduro por ser responsável por crimes de lesa-humanidade, você entende que a luta está avançando. Quando você controla ativos do Estado no Exterior, quando nós controlamos reservas de ouro do Estado no Reino Unido, empresas na Colômbia e Costa Rica, você entende que a transição começou. Transições são difíceis.
O Brasil poderia ter feito mais para pressionar Maduro a deixar o poder?
A gente tem um aliado sensacional no governo brasileiro e não só no governo federal. É em nível nacional. Os políticos brasileiros entendem a crise humanitária da Venezuela. Ninguém apoia isso, nem mesmo pessoas que possam ser de esquerda no Brasil apoiariam só por ideologia o que acontece na Venezuela. Se na ONU, o regime Maduro se apresenta, o Brasil imediatamente abandona a reunião. O apoio do Brasil é fortíssimo, contundente e que a gente agradece. Ele acontece no âmbito político, mas principalmente no acolhimento.
Como vocês estão operando como diplomatas, uma vez que o prédio da embaixada segue ocupado em Brasília?
Tivemos avanços. Temos no Brasil sete consulados. Desses, seis foram abandonados pelo regime. O único que continua é o de Brasília, que fica dentro da embaixada. Eles (os funcionários de Maduro) continuam ali não porque o governo brasileiro não tenha pedido para sair. O governo brasileiro os declarou persona non grata. Só que o deputado Paulo Pimenta (PT-RS) entrou com uma ação no Supremo, pedindo habeas corpus para esses funcionários do regime Maduro por questão da pandemia. Maduro critica o Brasil em como administra a pandemia, mas os coitados que têm aqui tiveram de receber um habeas corpus. Hoje eles não existem aqui a nível diplomático, perderam toda condição. Não têm nenhum tipo de capacidade jurídica ou diplomática, são cidadãos comuns que têm de regularizar seu status migratório. O prazo vence no mês que vem. O Itamaraty decidiu que tudo bem, eles não podem ser expulsos no meio de uma pandemia, o Supremo proibiu a expulsão, mas poderiam ser declarados persona non grata. Então, deixaram de ser diplomatas. Essas pessoas estão todas aglomeradas dentro da embaixada em Brasília, a gente continua sem entrar no prédio. Já não podem circular com os carros diplomáticos, não têm contas diplomáticas, perderam todos os privilégios diplomáticos. São cidadãos comuns e não abandonaram o prédio. A gente (representantes do governo interino de Guaidó) funciona em Brasília, temos um pequeno escritório onde mora também a embaixadora (Maria Teresa Belandria), mas que não fazemos questão de que o local seja de conhecido público por uma questão de segurança e porque a nossa embaixada de fato é o prédio que hoje está invadido por esse grupo.