A democracia dos EUA saiu ferida da quarta-feira, 6 de janeiro de 2021, mas está de pé. Há provas disso. A principal é o retorno dos congressistas ao plenário, ainda que escoltados pelas forças armadas, no meio da madrugada, para ratificar a vitória de Joe Biden, cumprindo o que manda a lei americana e, sobretudo, respeitando o desejo da maioria dos eleitores que compareceram às urnas em 3 de novembro ou votaram de forma antecipada. Não voltar, adiar a sessão, significaria sucumbir, conceder vitória aos arruaceiros, minoria barulhenta que, insuflada pelo presidente, atacou o parlamento.
Mas não: o rito foi seguido, a voz da maioria se fez ouvida. As constrangedoras cinco horas de sítio no coração da política da maior potência mundial serão lembradas apenas em nota de rodapé da História. No máximo, as cenas estarão no panteão da infâmia da democracia, ao lado de eventos traumáticos em que grupos minoritários tentaram se levantar contra as instituições, em tentativas de golpe na América Latina, Europa, África e Ásia. Os EUA não sucumbiram à tática do tapetão.
Curiosamente, no mesmo dia em que grupos trumpistas tentaram tomar de assalto o Capitólio para reverter, no grito, o resultado as urnas, a alguns quilômetros ao sul de Washington, a Geórgia deu exemplo de cidadania e respeito à vontade popular. Sem sobressaltos, dois políticos em ascensão foram eleitos senadores em segundo turno. Era para ser a notícia da quarta-feira – já que a sessão de homologação da vitória de um presidente eleito costuma ser mera formalidade –, não fossem as cenas da capital. As vitórias de Jon Ossoff e Raphael Warnock retiram dos republicanos a maioria no Senado, o que facilitará os primeiros meses da administração Biden. Pela primeira vez em vários anos, o partido perde a Casa Branca, segue minoritário na Câmara dos Deputados e é minoria na Câmara Alta – o que, no mínimo, deveria acender o sinal amarelo nas entranhas da legenda. Até que ponto, ceder ao canto da sereia de Donald Trump, um populista que desprezava os próprios correligionários, foi uma escolha acertada em 2016? Valeu a pena vender a alma a um bilionário apolítico, emergido de reality shows, que se dizia disposto a drenar o “pântano de Washington”, em troca de quatro anos de poder?
Hoje, parte do partido está sequestrado pelo trumpismo. Não à toa, nomes tradicionais, como dos senadores Mitt Romney e Mitt McConell, esse último o líder da tropa de choque de Trump nesses quatro anos, e o veterano deputado Mike Gallagher se afastaram do presidente.
O trumpismo vai continuar a fazer barulho por alguns meses, avacalhando a política americana e fingindo, com seu afã mítico, representar a verdadeira América. Mas, em 12 dias, Trump será passado.