O comício do presidente americano, no sábado (20), foi o exemplo mais bem acabado da cartilha trumpiana que defende os interesses pessoais - e eleitorais - acima do bem comum e das vidas humanas. Mais: representa o pensamento de uma autoridade que até pode ter entendido o barulho das ruas depois da morte de George Floyd, mas faz questão de contrariá-lo para agradar a seus eleitores e angariar votos.
Ato 1 - O palco escolhido para aquele que foi o primeiro comício do novo normal: Tulsa, no Estado de Oklahoma, e todo o seu significado. O bairro foi local do massacre de 1921, quando multidões brancas saquearam empresas e casas de negros, matando centenas de pessoas - o número até hoje é alvo de divergências.
Ato 2 - A data: o comício ocorreu um dia depois do Juneteenth, união das palavras "19 de junho", em inglês, que marca o fim da escravidão no país. O evento seria no próprio dia 19, e Donald Trump o adiou por conselho de seus assessores, mesmo contra sua vontade.
Mas não se engane: o presidente não estava lá para homenagear a luta dos negros ou em desagravo a Floyd depois do que o mundo gritou contra seu assassinato. Tanto que o presidente discursou no BOK Center por duas horas e não citou o feriado nem fez referência à luta por igualdade racial ou contra a violência policial. Ao contrário, criticou quem foi às ruas protestar (“desordeiros”), acusou-os de profanar a história do país e derrubar monumentos (“demolir nossa herança”) e criticou quem se ajoelha diante do hino nacional em um gesto contra o racismo (“vamos ficar orgulhosos e de pé”).
Trump fala para seus eleitores: brancos, héteros, defensores do uso de armas e protetores da “lei e da ordem”, como parece ser seu slogan para a eleição de novembro. Para muitos, não apenas o palco é perfeito como a desobediência às recomendações de autoridades de saúde soa como música. Prova disso era o gesto que muitos militantes repetiam ao entrar na arena de Tulsa: as máscaras distribuídas pela organização tinham como destino o lixo. Para que equipamento de proteção se o próprio presidente, a maior autoridade da nação, nega a gravidade da pandemia e diria, horas depois, ao público que ordenara que se diminuísse o ritmo dos testes para coronavírus? Segundo Trump, os exames são uma “faca de dois gumes” porque levam à descoberta de mais casos. Ora, nações que conseguiram domar o vírus são exatamente aquelas que testaram muito, rastrearam os contatos dos pacientes infectados e fizeram o isolamento social (algo que o próprio comício contrariou).
Enquanto o país contabiliza 2,2 milhões de infectados e 119 mil mortes, Trump fala para o seu público, joga para a torcida. Uma torcida, aliás, que para participar do comício, ao obter os ingressos, precisava concordar com um termo que dizia: “Ao clicar na confirmação abaixo, você reconhece que existe um risco inerente de exposição à covid-19”.