A partir da próxima quarta-feira, países da União Europeia (UE) vão reabrir suas fronteiras a nações de fora do bloco econômico - ao que tudo indica, com exceção de viajantes provenientes de territórios onde a pandemia ainda está sem controle, como Estados Unidos e Brasil. A retomada de viagens não essenciais não se aplicará a todos os países e seguirá critérios acordados entre os membros. O fechamento das fronteiras foi uma medida adotada para conter a disseminação do coronavírus.
Ao mesmo tempo em que o continente se reabre ao mundo, países como Portugal, que deram exemplo de contenção do coronavírus, observam o surgimento de novos surtos. Em Portugal, o desconfinamento sofreu um retrocesso na semana passada, depois que novos casos apareceram na Grande Lisboa e no Vale do Tejo.
Ainda assim, o país da Península Ibérica é modelo de combate ao vírus. Até sexta-feira, registrava 40,4 mil casos e 1,5 mil mortos, números bem inferiores em relação a seus vizinhos. O médico Filipe Froes é um dos maiores especialistas de Portugal no combate ao vírus. Pneumologista, Froes trabalha no Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, e é consultor da Direção Geral de Saúde e da Liga de Clubes de Portugal. Da capital portuguesa, ele concedeu a seguinte entrevista à coluna.
Portugal se tornou um exemplo de contenção do vírus, mas o senhor tem alertado que é precipitado pensar que o pior já passou. Por quê?
O resultado só pode avaliado no fim. É agradável parcialmente (o resultado), mas temos de ter noção que a avaliação final, como o nome indica, deve ser feita apenas no fim. Em Portugal, já tivemos em uma situação melhor do que a de agora. Na medida em que fomos desconfinando, voltamos a ter alguns surtos em grupos populacionais mais frágeis. São grupos muitas vezes mais carentes, com maior precariedade. Já estivemos melhor do que estamos agora, mas, de qualquer forma, são as dores do desconfinamento.
Qual foi o principal problema ao sair do confinamento?
Tivemos várias semanas em confinamento. Isso gerou uma saturação muito grande entre as pessoas. E esse desconfinamento ou dessaturação gerou um discurso de que estava "tudo bem", de que pior já tinha passado. Provavelmente, foi um fator para a menor adesão às medidas que se precisa manter. É preciso se dar conta de que ainda estamos no meio de uma pandemia, e na primeira onda. E temos de manter rigorosamente todas as medidas.
O que foi determinante para Portugal ter domado o vírus?
Foi termos uma estratégia. E a possibilidade de implementar a estratégia em tempo útil na medida em que a pandemia, quando chegou à Europa, não atingiu todos os países ao mesmo tempo. Fomos um dos últimos países da Europa a entrar em atividade sustentada. Estávamos cerca de três de semanas atrás da Itália e uma semana e meia atrás da Espanha. Esse tempo que tivemos foi essencial para delinearmos uma estratégia, com a criação de áreas dedicadas à covid-19 nas estruturas hospitalares, a fim de evitar a mistura de pacientes. Percebemos rapidamente que a maior parte dos doentes não precisava ir aos hospitais, ativamos estruturas nos centros de saúde e envolvemos os médicos clínicos gerais e de família no atendimento desses doentes. Portanto, mais de 80% dos nossos doentes eram atendidos em casa. Apenas se atendessem a critérios de gravidade eram enviados para os hospitais. Nesse período, os hospitais ao criarem áreas dedicadas à covid, aumentarem muito a capacidade de oferta (de leitos). Tivemos sempre uma oferta maior do que a necessidade. Nunca entramos em colapso. O fato de retirarmos os paciente menos graves das urgências hospitalares fez com que o fluxo de doentes fosse normal e permitiu que os hospitais trabalhassem sempre com condições de segurança e com boas práticas. Nunca fomos inundados por doentes, não houve sobrecarga. Tivemos uma grande capacidade de diagnóstico, de identificar rapidamente os contatos. Depois, a sociedade civil foi cada vez mais intervindo e contribuindo para a solução de vários problemas. A academia, os institutos universitários, politécnicos, desenvolveram técnicas de diagnostico por PCR, o que aumentou muito a nossa oferta (de testes). Começaram a desenvolver, por exemplo, álcool em gel. Muitas empresas relacionadas a bebidas alcoólicas canalizaram parte de sua produção para produzir álcool em gel. Muitas companhias têxteis passaram também a fazer máscaras de proteção. Houve aqui a conjugação de uma estratégia com envolvimento da medicina geral e familiar que foi fundamental para trabalhar com a maioria dos doentes de covid. E o aumento da nossa capacidade. Nunca tivemos falta de leitos em unidades de cuidados intensivos. Pelo contrário, sempre tivemos excesso de oferta. Agora, ao desconfiar, não está correndo tudo tão bem, mas temos de ir afinando a pontaria.
Que cuidados o senhor recomenda no momento do desconfinamento?
Ter uma capacidade muito rápida de fazer diagnóstico, de identificar os casos confirmados (da doença) e rastrear o restante dos contatos e manter a capacidade de resposta aos doentes infectados, assegurando atendimento aos doentes com outras patologias. Tem de ser uma gestão muito flexível, porque pode ser necessário, em um intervalo curto de tempo, ter de aumentar a oferta em uma ou outra área. E a adoção permanente de medidas de proteção: máscara associada a uma etiqueta (de comportamento) respiratória, higiene das mãos, distanciamento social e evitar os agrupamentos de pessoas.
Há retomada de medidas mais drásticas na Grande Lisboa e no vale do Tejo, nos últimos dias, depois que novos surtos surgiram. O fechamento e abertura da economia serão necessários por um longo tempo?
Algumas medidas de restrição. Não diria que seria o fechamento de atividades, mas a redução do horário e o melhor controle de público. A maior parte das lojas na zona de Lisboa tem que fechar até as 20h, está proibida aglomeração de mais de 10 pessoas e o consumo de bebidas alcoólicas na via pública. As pessoas ter de manter o uso de máscara sempre que tiverem em espaço com outras. O que temos de fazer é informar e mobilizar muito bem as pessoas. Elas têm de perceber que a proteção de cada um depende da proteção de todos. Contribuo para a minha segurança e para a segurança de todos. E os outros o mesmo. Isso não pode ser visto só como um problema dos outros. O cumprimento das regras não é só para os outros, é para todos. Quanto mais rigorosamente cumprirmos as regras, mais rapidamente começaremos a ter abertura e desconfinamento. Portanto, há necessidade fundamental de envolver as pessoas, de dar informação, explicação, para que perceberem o que têm de fazer e os riscos se não fizerem. Tem de haver uma grande campanha de comunicação, que talvez tenha falhado um pouco em Portugal. E haver coerência na comunicação. Temos de ter um conjunto de medidas que seja coerente entre si. Não podemos autorizar manifestações de um determinado setor e não autorizar de outro. Não pode haver agrupamentos, não pode haver manifestações sindicais ou de pessoas para se divertir. Temos de ser muito coerentes, muito claros nas medidas que tomamos.
Como o senhor vê, à distância, o quadro da pandemia no Brasil?
De forma muito preocupante. O Brasil é um país irmão, inclusive tenho família aí. Noto que há uma grande falta de coordenação central da atuação. E, a nível governamental, há uma grande desvalorização da doença. E quando temos descoordenação e desvalorização, necessariamente, vamos ter muitas parcelas da população que não irão aderir às medidas. A atividade do vírus no Brasil não é um problema de um determinado setor ou de uma região, é um problema de todo o país. É o que digo aqui, em Portugal: enquanto houver atividade viral em qualquer ponto do país, o problema é de todos nós. Portanto, vejo no Brasil desvalorização da doença, alguma descoordenação e muita falta de meios, como ventiladores. Tem de haver uma coordenação com o envolvimento de todos os profissionais de saúde, das sociedades científicas, da sociedade civil, e não podemos ter um discurso divergente entre si: algumas pessoas dizendo que é importante, outras desvalorizando (o risco da doença). Tem de haver um discurso claro, transparente e coerente.
Há o risco de uma segunda onda?
Há, mas temos de saber que ainda estamos na primeira (onda). Pode haver uma segunda, uma terceira, mas, a essa altura, temos de levar em conta que há duas coisas essenciais: primeiro, combater a primeira. Depois, nos prepararmos para a segunda. Mas, se nos prepararmos para a segunda e desfocarmos da primeira, teremos uma má resposta à primeira e uma má resposta à segunda onda. Portanto, o ideal é atuarmos no presente e nos prepararmos para o futuro, mas ainda estamos na primeira fase. Não podemos baixar a guarda ainda. E a preparação para a segunda é um processo contínuo que tem a ver com reavaliação de tudo o que foi feito, adaptação a novas evidências disponíveis, constituição de novas reservas, revisão dos circuitos. Mas o foco agora é: estamos ainda na primeira, ainda não acabou. E se agora não combatermos bem a primeira, ela até pode aumentar outra vez.
A UE deve reabrir as fronteiras no dia 1º de julho. É uma decisão correta ou equivocada neste momento?
É uma decisão que tem muito de fator político e econômico. Não percebo que as viagens aéreas e as condições nos aviões sejam suficientes, que tenham efetivamente resultado no combate à doença, como o anunciado. A maior responsabilidade pela disseminação em escala global da pandemia é das viagens aéreas. A retomada traz grande risco de importação e exportação de novos casos. Para as viagens aéreas, pelo menos no espaço da União Europeia, é obrigatória a utilização de máscaras (entre outras exigências). É necessário mais coerência e prudência, maior espaço entre os passageiros no avião. Quem viaja utiliza aeroportos, locais de grande aglomeração de pessoas. É preciso ter muito cuidado no rastreamento de sintomas na entrada (das pessoas nos países), nunca esquecendo que esse vírus tem uma particularidade: é transportado por assintomáticos que podem contagiar os outros.