Em Live nesta terça-feira (19) em GaúchaZH, o embaixador e ex-ministro da Fazendo Rubens Ricupero refletiu sobre as relações internacionais no mundo pós-pandemia do coronavírus e projetou o papel do Brasil na nova ordem global .
O diplomata entende que as críticas de setores do governo à China podem ter impacto na distribuição de uma vacina, caso a eventual descoberta de um antídoto seja feita por cientistas chineses. Em sua avaliação, a imagem brasileira no Exterior sofreu danos e que hoje o país é visto como uma nação que não soube administrar a pandemia.
Na conversa, Ricupero também respondeu às críticas do chanceler Ernesto Araújo ao grupo de ex-ministros de Relações Exteriores e diplomatas que assinou artigo recente publicado recentemente em vários jornais brasileiros com crítica à política externa. Em seu blog pessoal, Araújo chamou os signatários de "paladinos da hipocrisia".
- Nunca tomei conhecimento de pessoas que, não tendo argumentos racionais, procuram passar para o terreno dos ataques pessoais.
A seguir, os principais trechos da conversa.
Na crise, há governos que reagem de forma egoísta, retendo respiradores, leiloando produtos médicos. Ao mesmo tempo, nunca houve tanta cooperação científica para se encontrar uma vacina ou um tratamento. Que mundo nascerá após a pandemia? Mais cooperativo ou mais competitivo?
No mundo atual, como em todas as épocas, temos sempre uma combinação de luzes e trevas. Há aspectos negativos e positivos, e é preciso guardar o sentido do equilibro, de proporções para não exagerar num sentido nem no outro. É um fato que os países afetados pela pandemia, em geral, reagiram de maneira quase exclusivamente nacional. No início da pandemia, pode-se dizer que praticamente todos os países, mais de 95% das ações, foram exclusivamente nacionais, o que até é compreensível. É um problema que ameaça a saúde, a sobrevivência. As pessoas reagem com um instinto de auto-preservação. Há uma frase famosa de Euclides da Cunha, em "Os Sertões", durante um dos ataques dos sertanejos em Canudos, que diz assim. Um dos oficiais, quando morre o comandante, corre para o segundo e pede a ele ordens. O coronel Tamarindo (Pedro Nunes Tamarindo), que iria morrer também nesse combate, diz a ele, um pouco desesperado: “Em tempo de murici, cada um cuide de si”. Quer dizer: em tempos de seca brava, cada um se defende. Isso foi um pouco a regra em toda a parte. Agora, os países que saíram primeiro do momento de maior sufoco começam a mostrar atitude de maior cooperação. Estamos vendo isso na China sobretudo, em alguns países asiáticos, na UE, que no começo não socorreu a Itália nem a Espanha, estão mostrando mais solidariedade. Começa a haver mais disposição de cooperar. No plano científico, a cooperação tem sido exemplar, embora haja críticas à China, por ela não ter, desde o início, alertado sobre a pandemia. Se bem que eu acho um pouco exagerado.
Essa pandemia é nova. Esse vírus, até se perceber que tinha esse caráter contagioso, demorou um pouco. Então, acho um pouco exagero querer criticar o primeiro país que teve esse experiência. Agora, a própria China, que é criticada por isso, teve atitude meritória.
Por que, na sua opinião, as críticas à China são exageradas?
Essa pandemia é nova. Esse vírus, até se perceber que tinha esse caráter contagioso, demorou um pouco. Então, acho um pouco exagero querer criticar o primeiro país que teve esse experiência. Agora, a própria China, que é criticada por isso, teve atitude meritória, porque foram os laboratórios chineses os primeiros a identificar o vírus e a descobrir sua sequência genética. Eles imediatamente partilharam isso com o mundo todo. Eles poderiam ter guardado isso. Embora, algum fundo de verdade (sobre a desconfiança internacional) exista. O regime chinês busca controlar todos os aspectos da vida, é autocrático, fortemente hierarquizado, com Partido Comunista. Até certo ponto, é compreensível que as autoridades locais, no início, quisessem subestimar. Mas esse vírus era novo, ninguém conhecia, e demorou um pouco até se perceber a gravidade da coisa. O que acho mais meritório da parte dos chineses é terem partilhado a sequencia genética do vírus. Sem isso, nenhuma dessas experiências de vacina seria possível. Eles partilharam com todo mundo, inclusive com aqueles que agora rivalizam com a China no esforço de desenvolver uma vacina. Se foi difícil no inicio comprar máscaras e equipamentos, respiradores, no caso do desenvolvimento da vacina, existe o perigo de que seja uma luta ainda mais feroz. Há dois problemas envolvidos na vacina: primeiro, se essa vacina vai ser colocada à disposição de todo mundo, sem cobrar direitos de propriedade intelectual, de patente, ou se as companhias privadas farmacêuticas vão querer fazer fortunas com essas vacinas. O segundo problema é que no início o número de doses disponíveis vai ser limitado. Então, vai ter de haver uma ordem de prioridade. E é bastante provável que o país onde se desenvolver a primeira vacina, vai querer estar, naturalmente, no primeiro lugar da fila. Vai influir sobre as empresas ou universidades para atenderem ou não aos outros pedidos de acordo com suas próprias prioridades. Isso é um problema grave porque afeta o Brasil. Atualmente há 110 tentativas de desenvolver vacina no mundo. Dessas, algumas estão mais adiantadas, umas seis ou sete. E as mais adiantadas estão nos EUA, onde já foram anunciados alguns resultados positivos, há também uma experiência da China em parceria com o Canadá, há uma da Universidade de Oxford, e a experiência da UE, que até agora reuniu um fundo de mais de 7 bilhões de euros para desenvolver a vacina. E a gente pergunta: onde entra o Brasil nisso? O Brasil está muito ausente, não está participando de nenhum desses esforços.
Corremos o risco de ficar para atrás inclusive na hora da distribuição?
Tenho muito receio porque como o Brasil teve uma politica muito agressiva contra a Organização Mundial da Saúde (OMS) e personagens do governo brasileiro agrediram muito a China. O Brasil se colocou em uma posição que não é muito favorável. Imagine se o primeiro país a desenvolver a vacina for a China? Como fica o Itamaraty? Há duas semanas, a Fundação Alexandre de Gusmão organizou um seminário, com dinheiro oficial, cheio desses terraplanistas, sobre a pandemia. E o tema comum foi de que a pandemia é inventada, uma conspiração chinesa. Inclusive o número de mortes era exagerada, de que não era verdade de que fosse maior do que nos anos normais. Um país que se coloca nessa posição, se auto-exclui dos esforços de cooperação. Dias atrás, quando houve esforço da UE para levantar os 7 bilhões de euros, o Brasil não participou. Antes, houve uma reunião da OMS com Emmanuel Macron, participaram países como África do Sul, da América Latina, e o Brasil não participou.
Quando saiu o segundo ministro da Saúde, a primeira notícia nos noticiários do mundo inteiro era a demissão. A imagem é a realidade, eles estão vendo o que está acontecendo aqui. Eles mostram as cenas dos enterros em Manaus. Nós hoje estamos sendo considerados no mundo como o país que teve o pior desempenho, o mais disfuncional em enfrentar a pandemia.
Como o senhor acha que fica a imagem do Brasil diante de um governo que negou evidências científicas após essa pandemia, o que a gente chama de marca Brasil?
Nos tempos atuais, não há quase diferença entre a realidade e a imagem. Esse conceito era verdadeiro na época pré-internet. A pandemia hoje em dia é acompanhada no mundo inteiro em tempo real, inclusive o que acontece no Brasil. Todos os dias eu vejo o noticiário internacional, da Fraça, da Itália, da BBC, da CNN, o Brasil está sempre no noticiário. Quando saiu o segundo ministro da Saúde, a primeira notícia nos noticiários do mundo inteiro era a demissão. A imagem é a realidade, eles estão vendo o que está acontecendo aqui. Eles mostram as cenas dos enterros em Manaus. Nós hoje estamos sendo considerados no mundo como o país que teve o pior desempenho, o mais disfuncional em enfrentar a pandemia, não só comparado aos países asiáticos que foram os melhores, como Taiwan, Singapura, Coréia do Sul, Vietnã. Você vê a Argentina, nosso vizinho, o presidente Alberto Fernández, no dia 23 de marco decretou lockdown, confinamento obrigatório. Hoje, dois meses depois, a Argentina tem número de mortos menos de um décimo do que o do Estado de São Paulo. A qualidade da liderança é o que faz a diferença.
O senhor assinou um artigo junto com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o ex-chanceler Celso Amorim e outros embaixadores, no qual critica a atual postura da política externa brasileira. Por que dessa decisão e como surgiu a ideia de unir personalidades que pensam a política externa brasileira?
Há muito tempo, queríamos manifestar o repúdio a essa orientação extremamente desastrosa da diplomacia brasileira. Mas ainda não havia surgido a oportunidade ou ainda o clima não estivesse maduro para isso. Há uns 10 dias, os estudantes brasileiros da Universidade de Harvard organizaram uma grande conferência sobre vários aspectos da situação no Brasil. Um dos seminários era sobre a política externa. Conseguiram reunir pessoas muito diferentes, estavam três ex-chanceleres de governos distintos. Celso Amorim, que foi ministro do Exterior dos oito anos do governo Lula, Celso Lafer, que foi duas vezes ministro, na época de Fernando Collor de Melo e Fernando Henrique Cardoso, e Aloysio Nunes Ferreira, o último chanceler do presidente Michel Temer. Além disso, estavam presentes eu, que não fui ministro das Relações Exteriores, mas da Fazenda, do Meio Ambiente e subsecretário-geral da ONU durante quase 10 anos, e Hussein Kalout, que é professor de Harvard e foi secretário de assuntos estratégicos do governo temer. Durante a discussão, surgiu a ideia de mirar no futuro. Isto é, como deveria ser a reconstrução da diplomacia brasileira. Chegamos à conclusão que deveria ser na base nos princípios enunciados na Constituição brasileira de 1988. Ela é muito original, tem o artigo 4 que enumera 10 princípios que devem orientar as relações internacionais do Brasil: independência nacional, soberania, autodeterminação dos povos, não ingerência, solução pacífica dos conflitos, e um parágrafo único de promover a integração dos povos da América Latina. Então, nós mostramos claramente nesse artigo que a política externa viola ou em letra ou em espírito todos esses princípios orientadores. O que foi interessante no documento é que ele reuniu todos os ex-ministros de relações exteriores do Brasil vivos, com exceção dos três que foram chanceles de Dilma Rousseff e que são diplomatas de carreira, estão ainda na ativa e, pelas regras do Itamaraty, não podem se pronunciar. Não quisemos comprometê-los. Mas, com essas exceções, todos os os ex-chanceleres estão presentes. Toda a tradição viva da politica externa brasileira desde 1984.
Chama atenção que, no grupo, há personalidades de diferentes lados do espectro ideológico, desde uma tradição da diplomacia brasileira social-democrata até a de centro-esquerda, do PT, o que quebra a ideia de que pudesse ser um artigo originário de um bloco ligado a um determinado viés político. No entanto, a reação do chanceler Ernesto Araújo foi dura, chamando os senhores de “paladinos da hipocrisia”. O senhor já esperava esse tipo de ataque?
Não tomo conhecimento de ataques pessoais. O documento não cita nem uma só vez o nome do presidente Jair Bolsonaro nem o nome do chanceler. Não criticamos pessoas, não fazemos juízo de intenção nem de caráter das pessoas. O que fazemos é examinar objetivamente as políticas, os atos, as realizações. Quando a reação é baseada apenas em argumentos de insulto pessoal, nenhum de nós toma conhecimento disso. Eu nunca tomei conhecimento de pessoas que, não tendo argumentos racionais, procuram passar para o terreno dos ataques pessoais. Isso mostra, na verdade, que a pessoa não tem argumento. O que vimos é que caiu no vazio. Porque esse documento foi publicado no mesmo dia em muitos dos grandes jornais brasileiros e houve muitos editoriais. Que eu saiba, não há no Brasil ninguém que que apoie essa política. A não ser os extremos, que os americanos chamam da frança lunática da opinião pública. São os únicos que acreditam que a Terra não é redonda e esse tipo de coisa.
O senhor acredita que, passada a pandemia, será possível reconstruir a imagem do Brasil lá fora?
O dano é muito grande e, não há duvida, de que algumas perdas de credibilidade serão difíceis de superar. Mas acredito que, com o tempo, quando prevalecer a opinião da maioria sensata do país, teremos de voltar àquilo que o Brasil sempre teve: prestígio nascido não da força, mas do equilíbrio, da moderação, da sobriedade. O Brasil sempre se distinguiu por ser uma força construtiva, sempre foi um país que fez questão de não ser parte do problema, mas parte da solução. Sempre procuramos, na conferencia, por exemplo, na rio 92, sobre mudança climática, foi o nosso esforço que permitiu juntar correntes que eram muito diferentes. Até a Arábia Saudita, que era muito hostil à conferência, porque era e é uma grande produtora de petróleo. Mas nós conseguimos somar através da busca do mínimo denominador comum. É a mesma ideia desse documento. No futuro, o Brasil vai voltar a construir a sua credibilidade tendo isso como base, de aparecer como um país que não tem poder militar, não tem poder de impor sanções econômicas a ninguém, mas que procura dar exemplo de comedimento, de negociação, de ouvir o ponto de vista alheio, tudo o que esse governo não é.
Há, por um lado, um alinhamento estratégico do governo brasileiro com os Estados Unidos, por outro o Brasil tem na China seu principal destino das exportações. Em algum momento o Brasil terá de escolher entre um e outro? E esse momento chegará com a tecnologia 5G, entre dizer sim ou não à Huawei ou se seguirá a diplomacia brasileira de pragmatismo?
Como costuma dizer Celso Amorim, não se trata de alinhamento automático. É submissão automática. Nós seguimos os ditames americanos de maneira absolutamente acrítica, sem nenhuma consulta ao interesse nacional brasileiro. O que você diz é um perigo real. Até não colocaria como risco. Já está ocorrendo. Já houve várias gestões em alto nível do governo brasileiro contra a adoção pelo Brasil da tecnologia da velocidade 5G. A prova disso é que, até agora, a decisão foi adiada. Na verdade, o ilão já deveria ter sido realizado e tem sido empurrado com a barriga. Agora, foi adiado para o fim do ano. Obviamente, esse adiamento já é fruto das pressões. A situação é complicada porque, quando essa pandemia passar, podemos ter o agravamento da relação entre EUA e China, porque o presidente Trump tem culpado a China pela pandemia e faz isso com interesse eleitoral. Como vai ter de enfrentar as eleições em novembro e está ameaçado pela maneira desastrosa como geriu esse desafio, tem todo o interesse em transferir a culpa para bodes expiatórios, que são a OMS e a China. Portanto, ele vai escalar essa disputa. E nesse momento vai ficar difícil, porque o Brasil tem na China seu principal mercado. Nos primeiros quatro meses desse ano, de janeiro até abril, o que salvou o comércio exterior brasileiro foi a China e a Ásia. A única área do mundo na qual as exportações brasileiras cresceram foi para China, para Coréia do Sul, Singapura, para países asiáticos em geral. As exportações brasileiras caíram vertiginosamente para os EUA. É uma das maiores quedas de venda brasileiras. Não é uma questão de futuro, já é presente. No momento, o que está salvando o Brasil é a venda de soja em grão, de milho e de carnes para a China e para os países asiáticos. Se o brasil ceder a essa pressão americana, não terá alternativa. Porque os EUA não são mercado para nós. Hoje, quase 70% do que o Brasil vende são comodities, e nessas, os EUA são competidores. O maior rival do Brasil em soja e milho são os EUA. Não a China. Em todas essas áreas, carne suína, frango, bovina, etanol, os EUA competem com o Bbrasil. Não são mercado para o Brasil. É uma situação complicada. Teríamos de ser pragmáticos, olhar o interesse e não as preferencias ideológicas. Não é nem alinhamento com os EUA, o que está ocorrendo é um alinhamento com o presidente Trump. Se ele perder as eleições, o governo aqui vai ficar aqui em uma situação muito precária porque jogou todo o seu destino em uma aposta que é altamente arriscada.