Brasileiros que vivem ou trabalham no Exterior estão sendo vítimas de preconceito e constrangimento devido a sua nacionalidade. Maior país do continente e com medidas menos duras de isolamento social em relação à Argentina e ao Paraguai, o Brasil é visto como ameaça aos vizinhos por conta do elevado número de infecções e mortes por coronavírus.
Mesmo sem sintomas de covid-19 ou ter tido contato com infectados, cidadãos foram constrangidos e obrigados a ficar em quarentena pelo simples fato de serem brasileiros antes mesmo da entrada em vigor do isolamento obrigatório em Buenos Aires. Foi o caso da catarinense Marlize Scheidt, 35 anos, que foi coagida a permanecer em confinamento total em seu apartamento, no bairro Parque Patricios, na capital argentina, depois de ter recebido uma hóspede, Mishell Reinoso, 23 anos, que os vizinhos acharam se tratar de brasileira - na verdade, ela era equatoriana.
- Vocês têm de cumprir a quarentena, a gente escutou que alguém chegou do Brasil - disse um grupo de vizinhos, ao bater na porta do apartamento de Marlize.
A brasileira explicou a nacionalidade da mulher. Os vizinhos foram embora, mas regressaram cinco minutos depois:
Nossa imagem vai ficar bastante complicada
MARLIZE SHEIDT
Brasileira em Buenos Aires
- Uma das mulheres falou, em tom de ameaça: “Você sabe que a gente tem câmeras. Se vermos qualquer coisa fora do normal ou que vocês não estão cumprindo com isso (a quarentena) a gente vai ser obrigada a chamar a polícia".
Mishell decidiu ir embora. Mas, quando as duas desceram ao térreo, houve outra surpresa. O motorista do aplicativo, ao vê-las de máscara, partiu. Marlize já não podia voltar a seu apartamento porque havia uma espécie de cordão de isolamento formado pelos condôminos.
- Estavam praticamente todas as pessoas da administração, mais o porteiro. Fizeram uma barreira, e eu via que não ia poder passar por ali. Não ia mais poder entrar no meu apartamento - conta ela.
As mulheres foram escoltadas até o apartamento, e, apesar de confinadas, continuaram sofrendo constrangimentos. Marlize precisou dar explicações em três ocasiões à polícia.
- Aqui, sempre que é citado em reportagens que alguém está rompendo a quarentena, é especificada a nacionalidade da pessoa. Em sua maioria, são citados brasileiros. Acho que nossa imagem vai ficar bastante complicada - avalia.
O Instituto Nacional contra a Discriminação, a Xenofobia e o Racismo (Inadi), órgão do governo argentino responsável por casos de preconceito, afirmou que irá analisar o caso da brasileira. No site, também criou um guia voltado para “migrantes no contexto da covid-19”, com orientações para enfrentar a xenofobia e a discriminação durante a pandemia. A cartilha condena frases como “o vírus vem de fora”.
Viramos leprosos para os paraguaios
BRASILEIRO QUE MORA NO PARAGUAI
No Paraguai, país cujo exército chegou a cavar fossas para impedir a entrada de veículos provenientes do Brasil, entre Pedro Juan Caballero e Ponta Porã (MS), um comerciante que prefere não se identificar, diz que os brasileiros viraram motivo de piada no país.
- Viramos leprosos para os paraguaios. E a opinião pública está totalmente a favor do que o governo está fazendo, em isolar tudo - disse.
Outro brasileiro, Jorbel Griebeler, 42 anos, empresário e fundador da Cellshop Importados, afirma que seu estabelecimento está fechado há 60 dias. O governo liberou há poucas semanas o comércio por internet, mas não é possível exportar para o Brasil porque a fronteira está fechada:
- O alto contágio que os números têm demonstrado no Brasil deixa o pessoal muito preocupado. O número de mortes, que vem crescendo, faz com que o pessoal crie um bloqueio grande sobre a reabertura da fronteira.
Segundo o brasileiro, a maior parte da opinião pública paraguaia apoia as medidas de recrudescimento da fronteira:
O número de mortes, que vem crescendo, faz com que o pessoal crie um bloqueio grande sobre a reabertura da fronteira.
JORBEL GRIEBELER
Empresário brasileiro
- Estão muito a favor das atitudes do governo. Acham que tem de realmente manter esse isolamento com o Brasil para não permitir que o vírus entre no Paraguai, porque, se entrar, vai acontecer uma catástrofe.
Nas redes sociais, as críticas muitas. Imagens que vitalizaram na internet mostram figuras ironizando os brasileiros. Em uma delas, um paraguaio, ao cumprimentar o interlocutor, pergunta sua origem. Ao saber que é brasileiro, passa a serrar o próprio braço que estava em contato com a outra pessoa. Em outra cena, o personagem Homem Aranha tem em mãos um aparelho que supostamente identifica a nacionalidade e a “periculosidade” das pessoas para covid-19: “Meu detector de provenientes do Brasil está enlouquecendo”. Há também fotos com montagens de torcedores paraguaios com faixas xingando os brasileiros em guarani e outras em que uma capivara com a inscrição “provenientes do Brasil” aparece atacando, com uma faca, outra da mesma espécie com o desenho da bandeira do Paraguai.
A ausência de medidas rígidas no Brasil levou a Argentina e o Paraguai a apertarem o cerco para conter a disseminação do vírus também por caminhoneiros brasileiros. Os governos dos dois países só autorizam o trânsito de caminhões de cargas. Apesar da livre passagem, os transtornos são frequentes.
Me trataram como se eu fosse o próprio vírus. Fui impedido de descer do caminhão, de permanecer em postos
THEO GOMES
Motorista de caminhão
O caminhoneiro de Uruguaiana Theo Gomes, 57 anos, afirma que os casos de preconceito e discriminação são frequentes para a categoria. Na Argentina, os caminhoneiros não têm liberdade para circular e parar em qualquer lugar. Uma espécie de corredor rodoviário foi estabelecido com a demarcação de postos de combustíveis para os motoristas que abastecem e fazem refeições.
- Me trataram como se eu fosse o próprio vírus. Fui impedido de descer do caminhão, de permanecer em postos - conta, ao final de uma viagem pela Argentina.
Segundo ele, há relatos de caminhoneiros escoltados dentro das divisas das províncias. Eles não podem sair do veículo sequer para fazer necessidades ou para se alimentar.
- Os caras estão aterrorizados - diz ele.
Conforme Theo, a culpa seria dos relatos por parte da imprensa brasileira, que estaria “fazendo sensacionalismo com relação ao coronavírus”.
- Converso com os chefes de polícia e eles me dizem que estão agindo dessa forma porque o Brasil, para eles está cem por cento contaminado - afirma.
Diretora-executiva da Associação Brasileira de Transportadores Internacionais (ABTI), Gladys Vinci afirma que a entidade está anotando os casos e buscando apoio de consulados e das embaixadas brasileiras no Brasil e no Paraguai.
- Tivemos motoristas retidos, que ficaram em quarentena, mesmo não tendo problema de saúde - relata.
Ela afirma que caminhões brasileiros não podem entrar em certas províncias argentinas, como La Pampa (rota do transporte rodoviário que traz produtos como salmão do Chile) e San Luis. Nesses casos, são buscados caminhos alternativos.
- O motorista tem um tempo exato para entrar e sair da província, se ele passa desse tempo, é retido - diz.
Em Paso de los Libres, fronteira com o Brasil em Uruguaiana, Gladys afirma que os caminhoneiros não podem ingressar para utilizar banheiros ou restaurantes.
- Se uma pessoa de Libres tem contato conosco, não pode ir pra casa. Tem de ficar ou hospedada em hotel ou cumprir quarentena ela e a família dela - relata.
Em resposta a pedido de entrevista, o Itamaraty informou que "não tecerá comentários sobre declarações de autoridades estrangeiras".