Em 9 de maio de 2016, ingressei na Zona Verde de Bagdá, a surperfortificada área onde ficava o complexo de segurança de Saddam Hussein e onde hoje ocorre a maior parte das operações americanas na capital iraquiana – inclusive abrigando a embaixada que milícias pró-Irã tentaram invadir em 1º de janeiro, antes da morte do general Qassen Soleimani.
Entrei de carro para um encontro com fontes no Ministério da Defesa iraquiano, primeira etapa de uma viagem como enviado especial de GaúchaZH que resultaria na reportagem Bagdá, sete dias na metrópole mais perigosa do mundo. A intenção era pedir autorização para acompanhar uma operação do exército em Ramadi – cidade que, àquela época, havia sido a primeira do Iraque a ser libertada das mãos dos extremistas do Estado Islâmico.
Antes de chegar até ali, no trajeto entre o aeroporto internacional e a embaixada brasileira, trecho próximo ao local onde Soleimani foi alvejado por drones no dia 2, meu carro passou por cinco checkpoints em que policiais e militares iraquianos observam o interior dos veículos em busca de suspeitos. As barreiras que tornam Bagdá uma cidade fatiada, descontínua, são insuficientes. Esses pontos de passagem, formados por um veículo blindado e três ou quatro policiais, são os preferidos do EI para atacar. Como os motoristas são obrigados a reduzir a velocidade, formam-se congestionamentos. Ao explodirem esses locais, os terroristas atingem maior número de carros. Fazem mais vítimas.
Ingressar na Zona Verde, ou Zona Internacional, é como voltar ao passado em que o regime de Saddam mandava e desmandava no Iraque. Um dos cartões de visitas é o famoso monumento com duas espadas gigantes cruzadas sobre a avenida, o Arco da Vitória inaugurado em 1989 para comemorar a "derrota" do Irã para o Iraque. Os punhos foram confeccionados a partir de moldes de Saddam. Como uma praça da apoteose, o local servia de passarela para desfiles militares do ditador.
No cinema, a área virou filme homônimo do diretor Paul Greengrass, com Matt Damon no papel de um subtenente do exército americano que procura as supostas armas proibidas de Saddam. Na vida real, a região é cercada por estruturas chamadas de T-wall, imensos blocos verticais de concreto, de 3,6 metros, que vão se encaixando uns aos outros e formam uma barreira de proteção. Os pontos de entrada dão acesso restrito a uma determinada área, nunca a todas. A primeira camada, por exemplo, faz a contenção de manifestações. A segunda, de carros-bomba. Na terceira, você está no coração do poder iraquiano. Até agora, não consigo imaginar como as milícias pró-Irã conseguiram furar o bloqueio e avançar até a embaixada dos EUA, certamente um dos prédios americanos mais bem protegidos do mundo.
Ingressar na área exige credencial especial. Cidadãos “normais” não entram. Como se estivéssemos em um gigantesco quartel, soldados fazem exercícios, correm ao lado de poucos carros. Ao contrário do resto de Bagdá, onde a lei da buzina vigora nos cruzamentos, há sinalização e respeito às leis de trânsito.
Fui levado a um encontro do general Yehia Rasoul Al-Zulbedy, que, ao ficar surpreso com a presença de um jornalista brasileiro interessado em ir a Ramadi, se vangloriou dos feitos do exército ao desmantelar o Daesh – como eles se referem ao autoproclamado grupo terrorista Estado Islâmico.
Daesh é um acrônimo árabe de al-Dawla al-Islamiya fil Iraq wa’al Sham (Estado Islâmico do Iraque e do Levante, nome oficial do grupo). Daesh é também um trocadilho. Soa parecido com dahes, que significa “aquele que semeia a discórdia”. Ou seja, é uma maneira de os iraquianos negarem a qualidade de “Estado” ao grupo e insultarem os terroristas.
Antes da despedida, os militares mostraram com orgulho uma sala de operações com monitores sintonizados em canais internacionais de notícias, computadores e uma equipe de redes sociais. Era parte da guerra da informação levada a cabo contra o Estado Islâmico.
Naqueles sete dias em que estive em Bagdá, fiquei hospedado no Hotel Babylon, do outro lado do Rio Tigre, de frente para a Zona Verde. Várias vezes de dia e à noite, costumava subir até o último andar para gravar imagens e fazer fotos lá do alto, com visão privilegiada para alguns palácios de Saddam transformados em sedes administrativas do novo governo e da embaixada americana. Fotografar lá de cima não era permitido. Só consegui graças a um funcionário do hotel que me liberou o acesso. A explicação: atiradores de elite da embaixada, ao verem movimentações estranhas no alto do hotel, podem transformar o prédio em alvo. Uma câmera à distância pode facilmente ser confundida com um fuzil ou um RPG.