É saudável o mundo ficar com um pé atrás sempre que Vladimir Vladimirovitch Putin anuncia seus planos. Como exímio enxadrista da política, Putin costuma dar visibilidade apenas a uma parte de suas intenções — com impacto imediato. A outra porção, mantida sob sigilo até de seus mais próximos conselheiros, só se concretiza anos na frente.
Ao que tudo indica, o todo-poderoso e autoritário presidente russo começa a pavimentar o caminho para a sucessão, dentro de um projeto de poder iniciado em 1999, quando assumiu após a renúncia de Boris Yeltsin. Na quarta-feira, Putin fez uma jogada que surpreendeu boa parte do país — e do mundo — ao propor um referendo para alterar a Constituição, de 1993. A uma análise apressada, muitos pensaram que ele estaria seguindo a cartilha de seus afilhados políticos Hugo Chávez, Nicolás Maduro e Evo Morales — mexer na Carta Magna para permitir reeleições infinitas.
Não. O lance de Putin, é mais complexo, silencioso e à prova de qualquer suspeita. Ao mudar a Constituição, ele limita a presidência a dois mandatos. O pulo do gato vem a seguir: a mudança daria mais poder ao um órgão que hoje é meramente consultivo — o Conselho de Estado. Acredita-se que, em 2024, quando deixar o Kremlin, Putin almejaria seguir como presidente desta entidade, só que com um órgão vitaminado. Um Conselho de Estado poderoso garante o controle de todo o sistema. Ou seja, ele sairia do dia a dia do governo, mas manteria-se como a principal eminência parda do regime.
Putin não dá ponto sem nó. Há 20 anos, ele se aproveita do sistema de governo russo semipresidencialista — com o presidente e o primeiro-ministro com poderes muito semelhantes — para mandar e desmandar no país. Entre 2008 e 2012, por exemplo, fez o sucessor, Dimitri Medvedev, mas continuou comandando a nação como um poderoso primeiro-ministro.
Com a habilidade de ex-espião do FSB (Serviço Federal de Segurança, antiga KGB), o presidente consegue, por baixo dos panos, eliminar adversários sem provocar alarde _ até porque a imprensa é censurada no país. Para isso, vale até sacrificar aliados, como Medvedev, que renunciou logo após o anúncio de Putin.
Uma das suspeitas é de que caberá ao primeiro-ministro o posto de bode expiatório pelos problemas da economia, que patina abaixo de 2% desde que o país saiu da recessão do biênio 2015-16. A crise foi causada pela queda nos preços dos petróleo, um dos carros-chefes do país, e em alguma medida pelas sanções ocidentais devido à anexação da Crimeia e intervenção na guerra civil no leste da Ucrânia. A Putin, ficam os méritos, como ter estabilizado o país após a década perdida de 1990, iniciada pelo colapso soviético.
No plano externo, o presidente nunca teve tanto poder e influência. A Rússia hoje voltou a ser a principal força política de oposição aos Estados Unidos — enquanto a China prefere o papel econômico. Com o desengajamento dos americanos do Oriente Médio, Putin consagrou-se como senhor da paz e da guerra na região. Na Síria, manteve o ditador Bashar al-Assad entronado no poder. No auge da quase guerra entre EUA e o Irã, deu um recado militar aos americanos, fazendo operações no Mar Negro. Mantém boas relações com Israel e Arábia Saudita, aliados da Casa Branca, e atrai para sua zona de influência a Turquia, onde fica a base aérea das operações da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) na área _ Incirlik. Além disso,, apesar de o mundo ocidental espernear, a anexação da Crimeia se consolida dia após dia.