SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Após quase dois anos de suspense, Vladimir Putin iniciou nesta quarta-feira (15) o plano para organizar sua sucessão como presidente da Rússia -e manter, ao que tudo indica, o poder após deixar o cargo em 2024.
Em seu discurso anual sobre o estado da União, Putin defendeu um referendo para mudar a Constituição russa. O presidente ficaria proibido de servir mais de dois termos e o primeiro-ministro receberia muito mais poder.
Poucas horas após a fala, o premiê russo, Dmitri Medvedev, pediu demissão. Altamente desgastado por denúncias de corrupção e disputas internas no Kremlin, ele tinha sua saída esperada desde que Putin reelegeu-se em 2018.
Agora, a expectativa é sobre quem poderia ser o nome para o cargo, uma sinalização bastante forte acerca do estratagema de Putin para preparar um sucessor nominal no Kremlin.
Nos últimos meses, foram cotados nos meios políticos russos nomes como Serguei Sobianin, o prefeito de Moscou, e os ministros Maxim Orechkin (Economia) e Alexander Novak (Energia). Mesmo o liberal ex-ministro da Economia Alexei Kudrin, que voltou ao governo, era citado.
Seriam figuras mais jovens, adequadas a uma transição sob a tutela de Putin. Nomes de muita densidade política, como o do presidente da estatal petrolífera Rosneft, Igor Setchin, e o do ministro Serguei Choigu (Defesa), são sempre citados, mas também vistos como independentes demais do chefe.
"Nós precisamos de um referendo sobre todo o pacote de emendas à Constituição. Nós temos que confiar à Duma (Casa baixa do Parlamento) não só a aprovação, mas a escolha da candidatura do primeiro-ministro", disse o presidente ante uma plateia que reúne governo e parlamentares todo ano.
Vladimir Vladimirovitch Putin, 67, é o homem forte da Rússia desde agosto de 1999, quando foi apontado premiê por Boris Ieltsin. Assumiu interinamente a Presidência na virada do ano 2000, com a renúncia do presidente, e foi eleito em março daquele ano.
Reelegeu-se em 2004 e, em 2008, respeitou o limite constitucional de dois mandatos consecutivos na Presidência. Permaneceu, contudo, no poder: fez o sucessor, Medvedev, e tornou-se um poderoso primeiro-ministro.
Passados quatro anos, voltou a eleger-se presidente, colocando Medvedev de volta na cadeira de premiê e já com um mandato estendido de quatro para seis anos.
Viu o ápice da contestação interna a seu poder, com manifestações, mas também o auge de sua influência externa, operando a anexação da Crimeia e a intervenção militar na guerra civil da Síria.
Em 2018, reeleito com recordistas 76,7% dos votos, Putin passou a contemplar o futuro: se respeitasse as regras atuais, só poderia concorrer à Presidência em 2030, quando fará 78 anos.
Inicialmente, especulou-se que ele buscaria uma união com a Belarus para tornar-se um superpresidente de dois Estados, mas faltou combinar com o autocrata Aleksandr Lukashenko, 65, no poder desde 1994. A ideia murchou.
Agora, o mapa do caminho desejado por Putin está dado, e se assemelha à decisão tomada pelo ditador de outro vizinho ex-soviético, o Cazaquistão. Lá, em 2019, o presidente Nursultan Nazarbaiev, 79, renunciou, mas permaneceu como chefe do partido no poder e do influente Conselho de Segurança.
A sugestão dada no discurso de Putin é a sua permanência como um premiê empoderado -na Rússia, exceto nos períodos em que ele sentou na cadeira, o cargo é quase figurativo. Ele ainda disfarçou: "A Rússia deve permanecer uma forte República presidencialista", afirmou.
Ao dizer que "concorda em princípio" com a limitação de mandatos no estilo americano, que permite só uma reeleição, Putin de cara enfraquece qualquer um que o suceder. Ele havia sugerido a ideia bem indiretamente no fim do ano passado.
"O presidente seria [segundo a proposta] obrigado a indicar eles [premiê e vice-premiês]. Ele não poderia rejeitar nenhuma candidatura confirmada pelo Parlamento", disse. Tal arranjo nunca ocorreu na Rússia desde sua formação como Estado moderno, sob a dinastia dos Románov (1613-1917).
"Foi uma jogada esperta, legalista dentro do possível. Mas o cenário real depende de quem será o novo premiê, alguém com chance de ficar e ser formado como sucessor ou um tampão", afirmou por e-mail o cientista político Konstantin Frolov.
O mais vocal oposicionista ao regime, o blogueiro Alexei Navalni, ironizou o movimento no Twitter. "O principal resultado da fala de Putin: que idiotas (e/ou trapaceiros) são aqueles que disseram que Putin iria sair em 2024".
Navalni esteve à frente de uma série de grandes protestos desde 2017, mas nunca teve grande apoio popular, segundo pesquisas. Ainda assim, ele foi impedido de concorrer com Putin em 2018, por uma acusação judicial que ele diz ser montada.
Desde sua reeleição, na qual a descrença no sistema político e consequente fastio do eleitorado falaram mais alto que acusações de fraude para o resultado, Putin tem visto sua aprovação cair. De estratosféricos 80%, agora ela fica em torno de 60%, segundo sondagens.
Para o Kremlin, isso é pouco. O esquema de poder do presidente sempre se baseou em uma forte aprovação interna, que lhe permitiu manter facções rivais brigando pelo poder abaixo de si -exatamente como os czares e secretários-gerais do Partido Comunista da União Soviética faziam, com maior ou menor sucesso.
O nó está na economia, que patina abaixo de 2% desde que o país saiu da recessão do biênio 2015-16. Ele foi causada pela queda nos preços dos petróleo, um dos carros-chefes do país, e em alguma medida pelas sanções ocidentais devido à anexação da Crimeia e intervenção na guerra civil no leste da Ucrânia.
O discurso de Putin ainda trouxe falas diversas sobre política doméstica. Disse que a taxa de investimento precisa subir de 21% para 25% do PIB (Produto Interno Bruto), que é sua "responsabilidade histórica" resolver o declínio demográfico russo até a metade da década e anunciou medidas contra a pobreza.
No campo externo, voltou a dizer que pela primeira vez na história a Rússia estava na vanguarda de uma corrida armamentista, no caso, com seu programa de mísseis hipersônicos.
"Nós não estamos atrás de ninguém. Ao contrário, outros Estados vão ter de criar armas que a Rússia já tem", afirmou. Embora o valor estratégico de tais armas hoje seja quase nulo, elas são vistas como centrais no futuro da guerra, e os EUA anunciaram projeto para correr atrás do tempo perdido.