Em homenagem às vítimas de cólera, epidemia que dizimou mais de 10 mil pessoas (acredita-se que esse número possa ser bem superior), o ex-chefe da Organização dos Estados Americanos (OEA) no país caribenho, o professor gaúcho Ricardo Seitenfus, lançou a primeira edição de seu livro sobre o problema em francês em Porto Príncipe, no ano passado. Na obra "A ONU e a epidemia de cólera no Haiti" (Alameda Editorial), o doutor em Relações Internacionais denuncia "a maneira protelatória, diversionista e o reconhecimento tardio" da ONU em relação a sua responsabilidade pela introdução da doença no país durante a missão de paz liderada pelo Brasil, a Minustah.
Agora, Seitenfus lança a versão em português, obra revista e ampliada. O professor contou com dados do epidemiologista Renaud Piarroux, que conduziu sua pesquisa em nome dos governos de França e Haiti. O livro revela fortes indícios de que a cólera foi causada pela contaminação de um rio por soldados do Nepal que integraram a força de paz. Em 2016, o então secretário-geral da ONU, Ban Ki Moon, admitiu a culpa da entidade, mas até hoje as famílias lutam por indenizações. Seitenfus lançará a versão em português do livro no dia 17 em São Paulo. A seguir, trechos da entrevista concedida à coluna.
Como os haitianos receberam a edição em francês?
O livro vendeu bastante no Haiti. Claro que as vítimas não comprarão a obra. É uma elite universitária e intelectual que a compra. O lançamento foi muito concorrido, inclusive com a presença do ex-presidente do Haiti Jocelerme Priver. Depois, o livro foi lançado em Harvard, em Boston, em uma conferência sobre o Brasil. O que me interessava era fazer um lançamento também em outras línguas. Agora, teremos o lançamento em português, e, em janeiro, em espanhol em Santo Domingo (República Dominicana).
Alguém da ONU questionou o seu livro?
Não se manifestam. É a lei do silêncio. As autoridades sabem engolir isso, sabem que o livro não fantasia nada. É provado por A mais B que as Nações Unidas sabiam, desde o início, que haviam trazido o bacilo colérico (para o Haiti) e que esconderam isso durante anos para não serem responsabilizadas. O que era uma catástrofe que poderia ter sido controlada na medida que se soubesse o tipo de vírus transformou-se em um desastre sanitário.
Houve algum avanço nas Nações Unidas para uma investigação que leve à responsabilidade legal?
Não. Primeiro, o livro retrata os fatos de forma inconteste. Fui muito auxiliado pelo Piarroux, médico francês que foi o primeiro a detectar essa questão. Os fatos são muito importantes. O segundo aspecto: a estratégia diversionista das Nações Unidas para não serem responsabilizadas. Há várias etapas até que a organização chegasse a dizer: "Sim, somos culpadas, mas não somos responsáveis porque temos imunidade". A partir daí, discuto a questão da imunidade. Chego a uma conclusão terrível: se militares dotados de armas tem imunidade, isso significa dizer que soldados a serviço das Nações Unidas não respeitam as convenções de Genebra, o direito da guerra e o direito humanitário.
Seria uma contradição.
Total. As Nações Unidas são depositárias fieis da Declaração Universal dos Direitos Humanos. A explicação deles: "Tratamos da paz e da segurança internacional e temos de ser livres. Não podemos ter entraves". É como se o direito da guerra e as convenções de Genebra fossem entraves. A outra razão provém da importância financeira das operações de paz. Quase 70% do orçamento das Nações Unidas provêm das operações de paz. É uma fonte de recursos enorme. Quem comanda isso é escritório de assuntos legais das Nações Unidas e nenhum dos secretários-gerais desde 1945 tocou nesse assunto. Chegamos ao cúmulo de hoje vermos os militares que combatem sob bandeira das Nações Unidas sendo os únicos que não precisam respeitar os princípios contidos no direito da guerra e nas convenções de Genebra. É um imenso retrocesso e quase ninguém fala sobre isso.
Isso abre a possibilidade para que funcionários da ONU que cometeram outros crimes, como abusos sexuais, não sejam responsabilizados?
Na questão dos abusos, Ban Ki-moon criou uma ouvidora. Há um recurso dentro da instituição. Para crimes coletivos, como cólera, não há esse recurso. No final do livro, faço algumas sugestões: a renúncia pelas Nações Unidas de sua imunidade, uma mediação do Vaticano ou uma consulta à Corte Internacional de Justiça para ver quem tem razão. Mas isso deve ser provocado. É um livro triste, desagradável, que é contra a corrente de tudo o que imaginamos que deva ser uma operação, como o próprio nome diz, de paz. É muito triste ver as Nações Unidas, depositárias de tanta confiança pós-Segunda Guerra Mundial, enveredar por esse caminho.
É um livro triste, desagradável, que é contra a corrente de tudo o que imaginamos que deva ser uma operação, como o próprio nome diz, de paz.
RICARDO SEITENFUS
Doutor em Relações Internacionais e ex-chefe da missão da OEA no Haiti
Assim como a ONU usa as operações de paz para ganhar dinheiro, muitas vezes as ONGs também se aproveitam do desastre haitiano. Ou seja, só existem enquanto a tragédia durar. O senhor também analisou isso?
Esse é o pano de fundo. Mas nesse livro sou muito preciso, objetivo, quis escrever uma obra dura e inconteste. No livro anterior, falo sobre as ONGs, mas nesse quis ser cirúrgico e mostrar à opinião pública esses três aspectos da epidemia de cólera: os fatos, a catástrofe sanitária, porque tem gente morrendo até hoje e crianças que não foram à escola porque os pais gastaram todo o dinheiro tentando salvar os doentes do cólera, e a questão jurídica. É absolutamente técnico e propositivo, mas é duro, como é a história. Não há estatísticas sobre mortos. Fala-se em 10 mil, mas Piarroux fez extrapolações baseadas em pesquisas no norte do Haiti e chegou a 50 mil mortos. A gente nunca vai saber. Porque não há controle de nascimentos, identidade, são pessoas que moram no campo. Milhares morreram em razão dessa atitude de não reconhecimento por parte das Nações Unidas e as medidas profiláticas não foram tomadas. Podem ser cinco vezes maior o número de mortes. E 800 mil infectados. É a maior epidemia de cólera da história recente da humanidade. Há um silêncio inclusive das Organização Pan-americana de Saúde e Organização Mundial de Saúde (OMS), que são entidades que deveriam estar acima do bem e do mal. É um escândalo multifacetado.
Na contracapa do seu livro, há um depoimento do Mario Joseph, representante legal das vítimas de cólera. Ele tem levado adiante os processos por indenização?
Sim, há processos. Durante seminário em Porto Príncipe (neste final de semana), um dos objetivos é traçar uma estratégia. Querem que eu dê algumas ideias. A minha sugestão essencial é fazer com que os militares sejam submetidos às leis da guerra. Que todas as operações de paz já desenvolvidas responderão pelos seus atos. A segunda é que a ONU abra mão da imunidade nesse caso específico e negocie com as famílias uma indenização que deve ser individual e coletiva.