Um dos principais críticos da missão de paz da Organização das Nações Unidas (ONU) no Haiti, o gaúcho Ricardo Seitenfus denuncia os efeitos colaterais da operação que deveria levar estabilidade ao país mais pobre das Américas.
O maior deles: a epidemia de cólera, que matou entre 10 mil e 50 mil pessoas em 2010. O bacilo da doença fora levado para a nação por soldados do Nepal integrantes da Minustah, liderada pelo Brasil.
A ONU só reconheceu sua responsabilidade moral seis anos depois da matança. Seitenfus, representante da Organização dos Estados Americanos (OEA) no Haiti entre 2009 e 2011, cobra mais em seu novo livro, “As Nações Unidas e o cólera no Haiti”, que será lançado primeiro em Porto Príncipe e, em seguida, em Nova York. Ele exige responsabilidade legal, ou seja, indenização às famílias atingidas. Seitenfus conversou com a coluna esta semana.
Há um ditado haitiano segundo o qual uma vez no Haiti, sua vida ficará para sempre marcada por esse país. Foi o que aconteceu com o senhor?
Não consigo e nem quero me livrar. Não é uma responsabilidade nem uma função nem uma obrigação, é um prazer: fazer com que ecoe a voz dos haitianos. São entre 10 mil e 50 mil mortos pelo cólera trazido por soldados que vieram fazer o bem e manter a paz no Haiti e, por irresponsabilidade, trouxeram o bacilo. As Nações Unidas, depois de seis anos relutando, finalmente reconheceram que são culpadas por terem introduzido o cólera, por não terem feito exames prévios com os soldados enviados do Nepal. Ao mesmo tempo e esse é o ponto central do meu livro: elas se dizem culpadas, mas não podem ser responsabilizadas porque têm imunidade de atuação. Isso é inacreditável e gravíssimo. Desde a Guerra da Crimeia, em meados do século 19, foi se criando algumas obrigações para os combatentes. Não se poderia executar um ferido de guerra. Não se poderia queimar as plantações da população civil. Foi se criando um direito da guerra, que desembocou nas famosas convenções de Genebra. O militar, o soldado em combate, deve obedecer a princípios e regras. No caso dos soldados sob a bandeira das Nações Unidas não obedecem a nenhum. É algo inimaginável que através do DPKO (Departamento de Operações de Paz) evacuem completamente dois séculos de construção do direito humanitário e do direito da guerra. Os Estados mais poderosos viram, sobretudo depois de 1989 e 1990, que teriam ali um meio de fazer a guerra sem o controle do Direito. A começar pelos Estados Unidos. Os únicos soldados em armas, em atitudes ofensivas, que não têm nenhuma obrigação jurídica resultante desses princípios jurídicos criados ao longo de dois séculos são os combatentes sob a bandeira das Nações Unidas. Inclusive em algo tão primário como infectar as águas e matar civis, como no caso do Haiti. As Nações Unidas disseram que isso está no âmbito da imunidade deles. A primeira operação de paz das Nações Unidas é de 1948. A imunidade é de 1946 e visava única e exclusivamente os funcionários internacionais, os civis: inviolabilidade da sede das Nações Unidas, da mala diplomática, das comunicações, das contas bancárias. Não falava nada e nem se imaginava que haveria tropas. Transferir essa imunidade funcional e civil para militares dotados de armas ofensivas é um abuso.
Por que tropas de paz também se valem dessa imunidade?
Há países importantes que financiam operações de paz, como os EUA, que dizem que não submeterão seus militares a uma pretensa Justiça internacional. Só fazem isso se houver imunidade. Os americanos fornecem a maior parte dos recursos financeiros. Hoje, 60% do total do orçamento das Nações Unidas é oriundo das operações de paz.
Ao escrever o seu livro em francês e lançá-lo primeiro em Porto Príncipe é uma deferência ao povo haitiano?
É uma deferência às vítimas. São 800 mil infectados, há uma luta que se desenrola desde 2010 para que as Nações Unidas reconheçam indenizações. E porque isso diz respeito essencialmente a eles (os haitianos). Vejo um combate de um minúsculo Davi contra um gigante Golias. Quando esses dois mundos se encontram, os mais miseráveis entre os pobres do Haiti, aqueles que morreram, que foram infectados primeiro, e os mais poderosos, cujas decisões se originam no Conselho de Segurança, é um combate desigual. (O livro) É para dar uma satisfação a eles. Ban Ki-moon (ex-secretário-geral da ONU) reconheceu que tem uma obrigação moral, mas não legal. Eu provo no livro que as Nações Unidas têm uma obrigação legal, como depositária fiel da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Vejo um combate de um minúsculo Davi contra um gigante Golias. Quando esses dois mundos se encontram, os mais miseráveis entre os pobres do Haiti, e os mais poderosos, cujas decisões se originam no Conselho de Segurança, é um combate desigual.
RICARDO SEITENFUS
O soldado da paz é simpático para a opinião pública. O cólera, relatos de pedofilia e estupros por parte de tropas em missões desse tipo, são esqueletos no armário da ONU?
Agora, existe uma protetora da população civil junto ao secretário-geral das Nações Unidas, mas somente para questões individuais, casos de abusos sexuais e pedofilia. Para crimes coletivos, não. Inclusive a Comissão das Nações Unidas para Direitos Humanos jamais discutiu esse assunto. Eu queria chamar atenção dos colegas juristas: as Nações Unidas estão contornando a criação jurídica de dois séculos para proteger as populações civis com uma suposta imunidade.
Quais são as evidências de que as tropas nepalesas levaram o bacilo do cólera para o Haiti?
A epidemia aparece em julho de 2010 em Katmandu (capital do Nepal). É o mesmo bacilo. O mais revoltante é que as Nações Unidas sabem que foram elas que jogaram os dejetos humanos nos rios, na base do Nepal. Elas sabem que ali começou o cólera e fazem de tudo para dizer que não. Fazem isso para se desresponsabilizar, para desviar a atenção. Falam de mutações genéticas, aquecimento global, de limpeza de navios perto do porto, falam de tudo. As pessoas perdiam em quatro horas 20% do volume corporal em vômitos e diarreia. Centenas, milhares de pessoas morreram ali por não terem assistência porque as Nações Unidas não reconheceram sua responsabilidade.
O senhor considera que o Brasil, como comandante do componente militar da missão, também é responsável?
Total. Inclusive perguntei ao embaixador do Brasil na época qual era a posição do Brasil. Ele disse que era a posição do general brasileiro (comandante da missão), que o cólera não surgiu na base nepalesa. "E eu não tenho razão para duvidar da palavra do general", afirmou o embaixador. Havia uma lei do silêncio. Só no apagar das luzes da administração de Ban Ki-moon que ele fez aquela declaração (reconhecendo a responsabilidade). É uma luta pela verdade, primeiro. Nem tanto pela indenização. O advogado principal que defende as vítimas diz que o meu livro é a pá de cal. O processo está concluído com este livro: as Nações Unidas são culpadas e devem indenizar.
Como o senhor acompanhou o desenrolar da epidemia, enquanto estava no Haiti?
Eu tinha discussões com o corpo diplomático. Eu dizia: "Eles (os haitianos) têm o direito de saber se veio daqui ou dali". Atingiu todo o país. Foi uma explosão. Há uma foto em que estão com um caminhão que recolhia os dejetos das latrinas e jogam esse líquido no rio. Sem tratamento, sem nada. No Haiti, 90% da população não tem saneamento básico. A água do rio é para beber, para cozinhar, para se lavar, lavar roupa, para as crianças brincarem. Bebês morriam em duas horas.
O senhor escreveu outro livro muito crítico à ONU chamado “O fracasso da ajuda internacional”. Em que momento o senhor se decepcionou com o sistema internacional se tornou um crítico das organizações em que o senhor próprio trabalhou?
No domingo, 28 de novembro de 2010 (Seitenfus afirma que um golpe de Estado estava sendo preparado, liderado pelos EUA, contra o presidente René Préval). Naquele momento, pensei: “Não é possível”. Eu evitei o golpe contra o Préval. Ali, caiu a confiança no sistema internacional. Sou especialista em organizações internacionais, antes da missão, pensei: vou ver as organizações através do interior do funcionamento delas. Nada melhor para um professor que só utiliza livros ver através do ventre as entranhas do monstro. Mas as entranhas são muito feias. Dei-me conta disso naquele 28 de novembro. Com isso, não concordo. Ao tomar a decisão de interromper o processo de golpe contra o Préval, eu escolhi meu lado, o lado da universidade, da pesquisa, o que acho mais correto, e nunca mais poderia ser funcionário internacional e ser conivente com aquilo.
Mas o cólera está lá. Ninguém vai passar férias no Haiti, ninguém faz investimentos no Haiti.
RICARDO SEITENFUS
O Haiti está melhor ou pior do que antes da missão de paz da ONU?
Pior, bem pior. Há coisas que não são culpa da Minustah, como o terremoto. Mas o cólera está lá. Ninguém vai passar férias no Haiti, ninguém faz investimentos no Haiti.
Até com relação à democracia e estabilização o senhor acha que está pior?
Também. A liberdade sempre existiu. A qualidade da imprensa e da liberdade de imprensa no Haiti estão divorciadas com a realidade política e econômica do país. Muito acima da média latino-americana. E a qualidade dos intelectuais. Quando lancei meu livro, em 2015, naquele momento, na feira do livro de Porto Príncipe, foram lançados 185 novos livros.