Em 1688, quando William de Orange invadiu a Inglaterra, jurou o Bill of Rights (Declaração dos Direitos) e instaurou a monarquia parlamentar no reino de Sua Majestade. Sem derramamento de sangue, o episódio passou para a História como a Revolução Gloriosa e levou ao ocaso a monarquia absolutista, iniciada pela dinastia Tudor (1485-1603) e encerrada com Jaime II. De lá para cá, a monarquia britânica, amada por muitos, odiada por poucos e extravagante para nós, estrangeiros, é uma instituição simbólica. A voz do povo ecoa no parlamento, situado no belo Palácio de Westminster, às margens do Tâmisa, em Londres.
Em 28 de agosto de 2019, o primeiro-ministro Boris Johnson tentou, por meio de um golpe branco, tirar dessa instituição que sustenta em seus pilares uma das mais tradicionais democracias do planeta, o direito — e o dever — de representar os cidadãos. Com um canetaço — e a bênção, ainda que simbólica da rainha Elizabeth II —, decidiu fechar a Casa por cinco semanas. Ou seja, os deputados retornariam do recesso de verão (no Hemisfério Norte) na terça-feira (3), trabalhariam até o dia 9 e voltariam para férias forçadas até 14 de outubro.
Johnson tentou privar seus colegas de tempo hábil para construírem uma saída acordada para Brexit, previsto para 31 de outubro. Com Westminster vazio, teria o caminho livre para fazer do seu jeito a retirada do Reino Unido da União Europeia (UE) — privando, nada mais nada menos, o parlamento de tomar a decisão mais importante do país desde a II Guerra Mundial.
Não conseguiu. Bastou um dia para que a lei e a ordem voltassem soprar a favor da democracia. E assistimos àquelas cenas em a ação pessoal de um homem ou mulher mudam a História. Phillip Lee, médico de 49 anos, deputado do Partido Conservador, o mesmo de Johnson, deu 15 passos no recinto da Câmara dos Comuns. Enquanto o primeiro-ministro discursava, ele atravessou o salão e sentou-se ao lado dos opositores, aderindo ao Partido Liberal-Democrata. Sua justificativa: o Brexit sem acordo com a UE "será um desastre" para o sistema de saúde.
Com os 15 passos de Lee, os conservadores ficaram sem maioria na Casa. Ato contínuo, o Executivo perdeu (por 328 a 301 votos) o poder de determinar a agenda parlamentar _ o que deve ou não ser votado e em que prazo. Como em um jogo de dominó, as peças de Johnson começaram a desmoronar uma a uma. Nesta quarta-feira, a segunda derrota: por 329 a 300, a oposição conseguiu aprovar o projeto que proíbe que o país deixe a União Europeia sem acordo.
Johnson resiste em pedir à UE a prorrogação do prazo para o Brexit, previsto inicialmente para 31 de outubro. Para ele e sua arrogância, significaria mendigar a Bruxelas. Prefere reagir com a ação típica de populistas, chantageando a nação e ameaçando convocar eleições.
A verdade é que o apoio a Johnson começa a diminuir dentro e fora de Westminster. Não só a deserção de sua base de apoio que o apavora. Há parlamentares do próprio partido votando contra o Executivo _ os chamados dissidentes. Nesta quarta, eles foram expulsos da bancada parlamentar por Johnson. Entre os rebeldes, está Nicholas Soames, neto do ex-primeiro-ministro Winston Churchill. Com ou sem Brexit, com a democracia britânica arranhada mas de pé, alguém poderá dizer no futuro que "nunca tantos deveram tanto a tão poucos".