Um dos participantes do 13º Congresso Estadual de Magistrados, organizado pela Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris), entre os dias 14 e 16 de agosto, o conselheiro regional da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) na área de Comunicação e Informação, Guilherme Canela de Souza Godoi, alertou para o risco à democracia e à liberdade de expressão o fato de jornalistas, em vários países, serem obrigados a revelar suas fontes de informação. Após o painel Redes sociais e proteção de dados, ele conversou com a coluna.
O seu painel abordou redes sociais e proteção de dados. Que aprendizados se pode tirar dos episódios de vazamento de conversas de procuradores e magistrado na Lava-Jato?
Não posso comentar casos específicos porque a Unesco comenta situações nais quais a gente fez uma avaliação independente. A gente faz comentários sobre a situação de assassinatos de jornalistas em determinado país porque nós mesmos geramos dados e investigações sobre aquela situação particular. Não quer dizer que, no futuro, a Unesco não venha a fazer uma avaliação específica (sobre o caso da Lava-Jato), sendo solicitada pelo Estado brasileiro. Mas algumas coisas são importantes de ser pontuadas: um elemento que nos está preocupando em vários países é o crescimento, nos últimos anos, de um discurso de distintos atores, ou por decisões judiciais específicas, de solicitações de jornalistas que revelem suas fontes de informação. Sejam essas fontes obtidas através de vazamento de informação ou por outros métodos jornalísticos de obtenção de informação. Nesse sentido, a mensagem dos standards internacionais de liberdade de expressão é muito clara: a fonte jornalística tem de ser protegida. Se há crime no que se refere a como a informação original foi gerada, a perseguição desse crime tem de ser feita pelos poderes competentes em relação à fonte original, mas não exigindo que o jornalista revele como obteve os dados e quem é a fonte. Como padrão internacional, a questão do sigilo da fonte é fundamental.
Em alguns países, como Filipinas e Hungria, o sigilo da fonte está ameaçado. Observa-se também o crescimento de uma tendência de acabar com garantias do trabalho jornalístico em outros países.
Há muitas decisões judiciais, exigindo que o jornalista informe qual é a sua fonte. Nossa recomendação é que a proteção do sigilo da fonte, no caso do exercício do jornalismo, é parte integrante dos indicadores internacionais de liberdade de expressão. Quando a gente olha os documentos internacionais sobre o que significa uma imprensa livre, você vê que mencionam três grandes categorias: defesa de imprensa livre, independente e plural. E para que esse trinômio seja alcançado há uma série de elementos fundamentais. Um deles é o sigilo da fonte. Se você não se garante o sigilo da fonte, liberdade, pluralidade e independência da imprensa estarão diminuídas ou seriamente afetadas. A outra questão que tem a ver com vazamentos, o mais célebre o caso é do Snowden (Edward Snowden, ex-funcionário da Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos, que revelou caso de espionagem de cidadãos americanos e de governantes de países aliados), é a necessidade de que os países desenvolvam princípios legais e políticas públicas de proteção de denunciantes. Alguns vazamentos são considerados ilegais pela legislação nacional, mas, quando se tratam de vazamentos que estão expondo casos de corrupção ou graves violações de direitos humanos, se encaixariam na qualificação de proteção aos denunciantes. Porque, se essa proteção não existe, é provável que funcionários públicos com acesso a informações de corrupção e violação de direitos humanos que seus superiores estão realizando não se animem a divulgá-las, se sentem que serão penalizados. Uma parte significativa dessa discussão também está relacionada à questão da ética jornalística e da qualidade do jornalismo produzido em relação à verificação de informações obtidas através desse tipo de vazamento. No caso do WikiLeaks, do Snowden ou do Panama Papers, esses consórcios de jornalistas que se uniram para analisar os documentos não simplesmente repassaram tudo o que receberam. Fizeram o trabalho jornalístico de verificar se aquilo era autêntico, se não havia risco a terceiros de se divulgar informações que poderiam identificar, por exemplo, posições de bases militares de um país em determinado local, que poderia gerar riscos àquelas forças que estavam naquele lugar.
A questão das fake news é uma preocupação para a Unesco?
A Unesco tem preocupação com o avanço do que chama de campanhas de desinformação. Entendemos que o termo fake news é incorreto e desvaloriza a ideia de notícias como elemento central do jogo democrático. Mas, evidentemente, essa expresão acabou pegando, mas a Unesco, em seus documentos formais, utiliza a expressão desinformação. Porque se é notícia não é fake. Se é fake não é notícia. No nosso último informe sobre tendências mundiais em liberdade de expressão, a gente fez um alerta de que há uma crescente animosidade do discurso de líderes políticos contra a imprensa. Essa crescente animosidade inclui esse discurso de dizer que o conteúdo jornalístico é fake news. Mas não só, alguns governantes usam expressões como "imprensa corrupta".
Tenho visto crescente preocupação com um certo crescimento por parte de alguns atores de ataques ao conceito de multilateralismo.
GUILHERME CANELA
Representante da Unesco
Alguns líderes, como Donald Trump, chamam veículos de comunicação de inimigos do povo.
A Unesco alertou que esse discurso depreciativo, de chamar de fake news, sugerir que deva haver algum algum tipo de ataque contra a imprensa, é um ataque ao conceito de liberdade de expressão. Em alguns contextos, pode gerar violência real, física, não só online, o que já é um problema, contra jornalistas. No caso online, estamos verificando que alguns desses discursos intensificam a violência contra mulheres jornalistas, que acabam recebendo conteúdo de cunho sexista, misógino. Outra preocupação da Unesco é de formação. É um fenômeno difícil de combater e uma das soluções é educativa, ou seja empoderar os cidadãos e cidadãs para que saibam combater o fenômeno e que não compartilhem fake news.
Muito se fala em uma educação para a internet. Uma alfabetização digital.
A Unesco desenvolveu um curso de formação de jornalistas para o combate às fake news, um material desenvolvido junto à Universidade de Oxford. Esse documento, ainda que esteja só em inglês, tem milhares de downloads. Isso demonstra essa preocupação ao redor do mundo com a agenda de fake news e de desinformação. No início do ano, o papa Francisco liderou no Panamá a Jornada Mundial da Juventude. Fizemos uma parceria com a jornada para que o aplicativo distribuído a todos os jovens contivesse um conteúdo de como podem enfrentar o fenômeno das fake news.
Perda de relevância, ou tentativa de desconsideração dos órgãos multilaterais, como a Unesco, por alguns líderes nacionalistas e populistas preocupa vocês?
Os analistas que buscam conectar fenômenos como consolidação das democracias com desenvolvimento global e a proteção dos direitos humanos têm dito que estão preocupados com o discurso contra o sistema multilateral. Não é uma questão de localizar um ataque a uma organização específica, mas contra esse sistema de tomada de decisões internacionais que foi construído e aprimorado no pós-guerra, que tem as Nações Unidas como um de seus grandes expoentes. Tenho visto crescente preocupação com um certo crescimento por parte de alguns atores de ataques ao conceito de multilateralismo.