Até as mortes em Washington são políticas. E a saída de cena de John McCain, um dos mais importantes integrantes do Partido Republicano, veio em má hora para Donald Trump. Seu corpo imóvel na Rotunda do Capitólio fala — e fala muito no momento em que o comandante-em-chefe da nação enfrenta crise de credibilidade que pode desencadear um processo de impeachment. O cerco se fecha: na semana passada, seu ex-advogado Michael Cohen admitiu ter subornado duas mulheres para silenciar os affaires do chefe e seu ex-coordenador de campanha Paul Manafort foi condenado por corrupção por um tribunal.
Os principais caciques republicanos ainda mantêm um constrangido silêncio sobre o capítulo mais dramático até agora da novela trumpiana na presidência. Com maioria na Câmara e no Senado, os correligionários sabem que qualquer palavra pode abrir especulações no vai-não-vai da abertura de julgamento político para retirar o presidente da Casa Branca.
O corpo de McCain fala pela voz de seus colegas no funeral, mas também pela cadeira vazia do presidente americano, que não deve comparecer à cerimônia. Um dos últimos atos do senador, segundo a imprensa americana, foi o pedido para que Trump não presidisse sua cerimônia de despedida, atingindo-o naquilo que lhe é mais caro, os holofotes. O presidente deve ser representado pelo vice, Mike Pence.
Conheci McCain na eleição durante a cobertura da campanha eleitoral que perdeu para Barack Obama, em 2008. Não se pode dizer que aquela foi uma corrida presidencial limpa. Nenhuma é.
McCain foi um adversário duro contra Barack Obama, então o fato novo, o "change we can" da política americana cansada após oito anos desastrosos de George W. Bush. Fatos controversos foram trazidos à tona nos debates televisivos, como a suposta ligação do senador por Illinois com radicalismo islâmico pelo sobrenome "Hussein". Era época em que as fake news ainda estavam em gestação como máquina de propaganda.
Apesar dos golpes baixos de seus estrategistas, McCain era austero. Encarnava um dos últimos republicanos natos, que orgulhava as fileiras do partido. Nascido John Sidney McCain III na região do Canal do Panamá, era o tipo de candidato que despertava o encanto de uma geração por encarnar o locus de político apto a comandar a pátria no pós-Guerra Fria. Não apenas por ter lutado no Vietnã, mas por ter sobrevivido a ele, com bravura, quando a asa direita de seu jato A-4 Skyhawk foi arrancada e o piloto McCain, ejetado e com braços quebrados, sobreviveu em um lago de Hanói puxando com os dentes os pinos do salva-vidas. Quando conseguiu chegar à margem, foi capturado. Passou cinco anos na Hanói Hilton, o apelido da prisão comunista. Lembro que as características físicas de McCain que mais chamavam a atenção nos comícios em 2008 eram a limitação de seus movimentos por conta das torturas como prisioneiro.
Nos últimos anos, o senador sempre era lembrado como um dos candidatos possíveis de Partido Republicano com quadros cada vez mais envelhecidos. Em 2012, foi preterido, em troca de Mitt Romney, mais novo, com perfil de gestor. A carência de nomes nas entranhas republicanas, que faria o partido abraçar à fórceps Trump em 2016, já estava presente.
No Senado, McCain nutriu a fama de manter um controle rígido do dinheiro dos contribuintes. Livre das amarras da idade, sentia-se à vontade para pensar por si próprio e não pela legenda. Rompeu com Trump ainda na campanha. Não por divergências políticas, mas por questões éticas: diante da frase do candidato, segundo o qual, quando se é famoso, mulheres deixam que você faça "qualquer coisa".
McCain prosseguiu com sua metralhadora giratória verbal, cobrando Trump por sua política de separar imigrantes ilegais dos filhos. Coragem, honra, decência e caráter eram qualidades do senador. Não a toa, foi chamado de herói nos títulos dos obituários americanos, do mais direitista jornal republicano ao mais esquerdista diário de tintas democratas. Ainda que Trump tenha proibido a Casa Branca de usar esta palavra no comunicado oficial.