Mónica Baltodano pegou em armas na juventude, atuou na clandestinidade ao lado de Daniel Ortega na Frente Sandinista de Libertação Nacional, foi uma das comandantes da revolução na Nicarágua que derrubou a ditadura de Anastasio Somoza e inspirou a esquerda latino-americana nos anos 1970. Agora, milita em outra trincheira. Aos 63 anos, ela rompeu com ex-comandante, de quem foi ministra, e atua na oposição, articulando as manifestações que exigem a renúncia de Ortega, hoje presidente.
— O governo começou a matar seu próprio povo — denuncia ela.
A entrevista à coluna, desde Manágua, capital da Nicarágua, foi concedida na quinta-feira, dia em que a revolta, que já deixou mais de 400 mortos no país, completou cem dias. A seguir, os principais trechos da conversa.
Como está a situação na Nicarágua neste momento?
Temos um governo que começou a matar seu próprio povo. Essa certeza está corroborada pelos mais de 400 mortos registrados pela Associação de Direitos Humanos da Nicarágua e por organismos internacionais. Este governo está disposto a atirar contra a população para conservar a todo custo o seu poder.
Como a senhora acredita que essa crise vai terminar?
Não temos isso claro. A maioria das pessoas se rebelou contra as injustiças que ocorre na Nicarágua há anos. Esta rebelião é autenticamente nicaraguense, de um povo que tem uma longa história de lutas, inclusive armada. Mas, desta vez, as pessoas decidiram se rebelar de forma pacífica e desarmada. Essa rebelião cívica até o momento tem sido esmagada pela via da força armada, não aplicada diretamente pelo exército, mas pela polícia acompanhada de grupos armados de civis armados que não têm nenhuma piedade em disparar contra a população desarmada. Essa rebelião se mantém pela decisão das pessoas de continuar se mobilizando, de resistir e de não aceitar a imposição de um governo que já consideramos ilegítimo e criminoso. Nas localidades mais distantes, há marchas, manifestações e expressões de rebeldia.
Um golpe é possível?
Ortega acusa esse movimento de golpista, mas golpista é ele. Ele é quem tem a força, quem tem as armas. Nunca vi um golpe ser dado por gente desarmada. O que fazem as pessoas é se rebelar. Quem está mantendo o poder pela via da força e do golpe é ele, porque é quem tem não apenas as forças armadas mas também um exército paralelo, de paramilitares, que vemos nas ruas todos os dias.
Como está a situação nas ruas?
Há tensão. Hoje, completam-se cem dias desde que começou a rebelião de 18 de abril. Em todo o país foram convocadas manifestações culturais pelos cem dias. Em Manágua, essa celebração deveria ser realizada na ponte Rubenia, mas desde as 9h há mais de cem soldados da polícia e paramilitares nesse local. Então, neste momento, a manifestação foi deslocada para outro ponto. As pessoas irão a essa manifestação, mas com medo de serem reprimidas. Vivemos uma aparente tranquilidade em alguns lugares, como em Manágua, mas há uma sensibilidade muito grande porque há milhares de jovens vivendo como clandestinos, escondidos em casas. Outros tiveram de fugir para Costa Rica e Honduras, buscando refúgio. Vivem em condições de refugiados para evitar que os capturem, que os assassinem os que os mantenham na prisão.
A Frente Sandinista foi uma inspiração para esquerda na América Latina. Em que momento Ortega se converteu em um líder autoritário?
Foi um processo que começou depois da derrota eleitoral (ele foi derrotado em 1990, 1996 e 2001), com a apropriação de bens, com a construção de uma burguesia que terminou sendo a nova classe burguesa emergente, que transformou os critérios e seu ponto de vista na defesa de um modelo capitalista, neoliberal, de favorecer as multinacionais, o agronegócio, um modelo totalmente capitalista, mas que era coberto com um discurso anticapitalista, revolucionário e anti-imperialista. Mas era meramente discurso. O governo tem um discurso de esquerda e uma prática de direita. Quando chegou ao poder, em 2007, ele se dedicou a concentrar todos os poderes, o Legislativo, o Executivo, o Judiciário, o Eleitoral e se converteu em um déspota. Em 18 de abril (quando começaram as manifestações), Ortega desnudou-se como um autocrata, disposto inclusive a disparar contra seu próprio povo não apenas para conservar o poder político, mas também o status quo da grande classe exportadora no nosso país.
Como comandante sandinista, a senhora conhecia Ortega de perto. Como ele é?
Trabalhamos juntos durante todos os anos 1980. Em 1990, fui parte da Direção Nacional da Frente Sandinista, observei de perto esta mudança, sua enorme contradição quando se deu esse pacto em 1999, 2000. Eu era deputada e me opus a esse pacto. Comecei a denunciar as mudanças que ele estava fazendo, a apropriação da Frente Sandinista e a conversão do partido em propriedade privada, como uma instituição pessoal dele e de sua mulher. Eu o denunciei por muitos anos. Em 2018, isso se tornou claríssimo para toda a sociedade e por isso 70% da sociedade diz que já não quer que ele siga à frente do governo.
É uma decepção para a senhora e para quem acreditava no sonho dos sandinistas?
Sim. Com sua atuação, contribuiu para enterrar a Frente Sandinista como partido progressista, revolucionário. Durante muitos anos, (essa situação) vai manter enterradas as ideias de esquerda na Nicarágua. Porque Ortega, ao ter um discurso de esquerda e uma prática criminal, está provocando não só o repúdio do povo nicaraguense, mas de todos os povos do mundo e favorecendo, desta maneira, os planos imperialistas no nosso país. Ele está enterrando os sonhos de que um povo pode, com bandeiras de esquerda, progressistas, fazer coisas boas. Ele está fazendo tudo ao contrário e contribuindo para uma derrota grave na América Latina aos projetos de esquerda. Durante anos será muito difícil voltar a levantar esta bandeira.
A senhora vê semelhanças entre Ortega e Hugo Chávez ou Nicolás Maduro?
Há uma enorme diferença e rejeitamos que o caso da Nicarágua seja colocado como se fosse outra Venezuela. Aqui, as pessoas se rebelaram devido à rejeição às políticas neoliberais de Ortega. Mas se rebelaram principalmente porque, desde o primeiro dia, ele disparou contra pessoas desarmadas. E isso ninguém pode aceitar. Não é um assunto de esquerda ou de direita. É um assunto ético. Como pode ver visto como normal um presidente disparar contra sua população. Nos primeiros três dias, foram 25 estudantes assassinados por protestarem pacificamente a partir de sua universidade. E até hoje há mais de 400 assassinados. Em cem dias, 400 assassinados! É um assunto absolutamente inaceitável. Este é um presidente criminoso que dispara contra seu povo.
Conte um pouco a sua história.
Sou de León, um departamento rebelde durante toda a sua história. Quando eu tinha 15 anos, iniciei minhas atividades políticas, era parte do movimento cristão. Me envolvi depois com a Frente Sandinista, em 1972, quando sopravam os ares da Teologia da Libertação. Me envolvi na luta clandestina em 1974. Lutei cinco anos na clandestinidade, fiquei um ano presa no cárcere da ditadura Somoza (ditador nicaraguense). Em 1978, fiz parte do estado-maior da insurreição. Fui uma das três mulheres que receberam distinção como comandantes guerrilheiras em 1979, no ano do triunfo da Revolução. Dirigi a tomada Jinotepe e Granada, e por isso recebi distinção como comandante guerrilheira. Nos anos 1980, fui ministra de Assuntos Regionais, trabalhei com as prefeituras. Toda minha vida trabalhei muito perto das pessoas. Por isso, me rebelei contra a lógica autocrática e centralizadora de Ortega, porque sempre estive muito vinculada aos movimentos sociais. Sou membro da Articulação dos Movimentos Sociais, que reúne cerca de 70 organizações que trabalhamo na defesa dos territórios, do meio ambiente. Estamos buscando criar um poder alternativo, porque o orteguismo destruiu as organizações populares.
Como era Ortega antes de vocês romperem, do ponto de vista psicológico?
Acredito que ele era uma pessoa que não tinha muita experiência no trabalho popular, mas conseguiu o respeito das pessoas. Depois, ele se apegou muito à lógica de poder, tem uma obsessão por poder impressionante, e isso o fez mudar e se converter em uma pessoa focada na defesa de seu próprio espaço pessoal e de sua família. O governo hoje é muito vinculado a sua família e de repartir o poder entre sua família.
A senhora teme que a situação se agrave e haja mais sangue na Nicarágua nos próximos dias?
Tenho muito medo. Ele reprimiu com sangue uma primeira onda de rebeldia que se manifestou com a construção de barricadas. Mas a decisão do povo de reivindicar que Ortega vá embora está viva entre as pessoas, entre as manifestações pacíficas. Estamos convencidos de que, como ele decidiu recorrer à repressão como via para manter-se no poder, vai continuar reprimindo. Há centenas de presos, de desaparecidos, de torturados. Está tratando de aniquilar tudo o que restou de resistência popular, por isso a maioria dos líderes está na clandestinidade.
As armas são opção a vocês agora como já o foram no passado?
Para nós, as armas é o caminho dele. Ele quer que as pessoas saquem suas armas, mas em três meses ele não conseguiu mostrar uma foto sequer de pessoas armadas nas barricadas. Porque as pessoas escolheram o caminho da luta pacífica. Sabemos que esta é a maneira pela qual vamos demonstrar que temos razão. Pessoas como eu, que lutamos com armas no passado, estamos mostrando aos jovens que a melhor maneira é a luta pacífica. E vamos mostrar a superioridade dos propósitos do povo frente à repressão, ao autoritarismo e ao militarismo. Ele só se sustenta pela repressão e pelas armas, são as únicas coisas que restaram. Porque ele já não tem apoio do povo, o respaldo internacional. A maioria das forças de esquerda o repudiou, só lhe restam alguns poucos partidos vinculados à esquerda mais cega, que não consegue entender que este não é nenhum projeto do imperialismo. Esta é a rebelião de um povo.