O assassinato da estudante de Medicina Raynéia Gabrielle Lima, na noite de segunda-feira, quando voltava para casa em Manágua, atrai o Brasil para o centro da crise na Nicarágua. Ainda que não se possa estabelecer relação direta entre a morte e os conflitos que colocam o país à beira da guerra civil, o episódio aprofunda ainda mais a crise nas relações entre o regime de Daniel Ortega, histórico líder da esquerda latino-americana, e o governo Michel Temer e parceiros do subcontinente.
O Brasil, que já vinha criticando a repressão na Nicarágua, subiu o tom depois da morte de Raynéia e convocou seu embaixador a dar explicações. Em seis pontos entenda a situação na Nicarágua.
Em que condições a brasileira foi morta?
Raynéia Gabrielle, pernambucana, 30 anos, estudante do sexto ano de Medicina na Universidade Americana, voltava para casa quando o carro em que estava foi atingido por tiros de metralhadora. O crime ocorreu no complexo residencial de Lomas de Montserrat. Ernesto Medina, reitor da Universidade Americana em Manágua (UAM), onde a jovem estudava, responsabilizou um grupo de paramilitares pelo assassinato da brasileira. A Polícia Nacional da Nicarágua, no entanto, nega a versão do reitor, e afirma que os tiros foram disparados por um vigilante, em circunstâncias que ainda estão sendo investigadas. Raynéia não participava dos protestos contra o presidente Daniel Ortega.
O que está acontecendo na Nicarágua?
O assassinato da brasileira chama atenção porque ocorre em meio a uma situação de quase guerra civil na Nicarágua. É a crise mais sangrenta da história em tempos de paz no país e a mais forte desde a década de 1980. Grupos de oposição e policiais, auxiliados por grupos paramilitares, têm se enfrentado nas ruas há várias semanas. Os manifestantes, em grande parte formada por estudantes, denunciam a corrupção e querem eleições antecipadas. A Organização das Nações Unidas (ONU) e entidades de direitos humanos têm denunciado a brutalidade das forças de segurança — dizem que pelo menos 350 pessoas morreram, sendo a maioria manifestantes. A Organização dos Estados Americanos (OEA) pede a convocação de eleições em março do próximo ano, hipótese descartada veementemente pelo presidente.
Como começou a crise?
Os protestos contra Ortega e sua mulher, a vice-presidente Rosario Murillo, começaram em 18 de abril depois de uma fracassada reforma da Previdência. A medida foi revogada pelo governo no dia 22, mas os protestos continuaram, agora pedindo a renúncia do governo. Grupos pró-governo atacaram de forma violenta um pequeno protesto. Essas organizações, popularmente conhecidas como "grupos de choque", já haviam sido usadas no passado para reprimir manifestações contra Ortega. À medida em que os confrontos se acirraram, mais pessoas ficaram feridas ou foram mortas dos dois lados, o que alimentou o ciclo de violência. Desde então, o país já teve duas greves nacionais de 24 horas, e universitários ocuparam a Universidade Nacional Autônoma da Nicarágua Principal entidade de empresários do país, o COSEP anunciou a ruptura com o governo. Ortega já não conta com o apoio da Igreja, importante ator no cenário em um país extremamente católico como a Nicarágua. O país está repleto de bloqueios nas estradas e barricadas, que as forças de segurança vêm tentando impedir.
Quem é Daniel Ortega?
José Daniel Ortega Saavedra é o histórico líder da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), que derrubou a ditadura de Somoza em 1979, durante a Revolução Sandinista. O próprio Ortega era estudante nos anos 1950, quando pegou em armas para derrubar o clã Somoza, apoiado pelos EUA e no poder havia décadas. Foi presidente entre 1985 e 1990 (eleito com mais de 70% dos votos). Perdeu em 1990 para antiga parceira de trincheiras, Violeta Barrios de Chamorro. Voltou ao cargo em 2006, tendo sido reeleito em 2011 e 2016. Trata-se do último dos líderes revolucionários da América Latina comanda um regime cada vez mais parecido com o que ajudou a derrubar. Seu governo caminha para uma autocracia.
Ortega é uma espécie de Chávez?
A trajetória de Ortega a caminho de uma ditadura segue a cartilha bolivariana. Ele instaurou a reeleição indefinida, nomeando juízes para a Suprema Corte, o que lhe garante a permanência no poder até 2022. O presidente também recebeu apoio dos presidentes da Venezuela, Nicolás Maduro, e da Bolívia, Evo Morales, e uma declaração favorável do governo de Cuba.
Sua herdeira política é a mulher e também vice-presidente, Rosario Murillo. Os filhos ocupam cargos importantes em estatais e detêm o monopólio das emissoras de TV na Nicarágua. Aos poucos, o clã Ortega assumiu o controle do exército, do Judiciário e da mídia.
Por que a morte abre uma crise diplomática?
A morte da brasileira leva a um princípio de crise diplomática entre Brasil e Nicarágua. Em nota, o Ministério das Relações Exteriores condenou a morte e disse que busca esclarecimentos junto ao governo nicaraguense. A embaixadora da Nicarágua no Brasil, Lorena Martínez, foi convocada a dar explicações ao Itamaraty, um dos primeiros atos de protesto. O próprio embaixador do Brasil na Nicarágua, Luís Cláudio Villafañe Gomez Santos, também foi convocado. O governo Michel Temer, alinhado com a centro-direita latino-americana, tem criticado duramente regimes como o de Ortega, parceiro de Venezuela e Bolívia. O tom das críticas foi elevado. A convocação do embaixador brasileiro ao Itamaraty é um alerta para autoridades da Nicarágua, sinalizando que o governo quer explicações para definir medidas que garantam a segurança dos brasileiros no país. É o primeiro passo antes do rompimento de relações diplomáticas.