Analisando com os olhos de hoje, claro, parece uma obviedade. O problema mais grave de Porto Alegre, para os eleitores entrevistados pela pesquisa Quaest divulgada nesta semana, não é saúde, nem segurança, nem rua esburacada, nem pobreza: a resposta mais frequente foi "enchentes/alagamentos". Não poderia ser diferente. É evidente que esse é o nosso maior problema.
Mas, se a mesma pesquisa fosse realizada um ano antes, ninguém responderia assim. Talvez a possibilidade de uma enchente já devesse ser encarada como um problema, mas o fato é que não era. Por quê? Porque, no mundo em que vivíamos — aquele mundo que não é o mundo real, mas é o mundo que conseguimos enxergar —, uma enchente era impensável. Collin Murray Parkes, psiquiatra inglês que morreu em janeiro, chamou esse mundo de mundo presumido. É graças a esse mundo, e não ao mundo real, que a gente adquire alguma segurança para seguir em frente. Vou explicar.
Precisamos acreditar que amanhã o sol vai nascer. Que as ruas estarão lá. Que nossos empregos nos esperam, que nossos amores seguirão por perto, que nossas casas continuarão em pé. Sem essas convicções (que, na verdade, são suposições), a vida se tornaria, diariamente, um mergulho assustador no desconhecido. Não suportaríamos tanta incerteza.
Mas aí, quando uma enchente leva tudo embora, ou quando uma pandemia desarranja o nosso jeito de viver, vem o pesadelo: as garantias que sustentavam nosso cotidiano se desintegram. Nada, amanhã, vai ser como esperávamos. É como se o chão, que parecia firme sob nossos pés, ficasse repentinamente líquido. E assim ocorre a quebra do mundo presumido.
É uma experiência horrorosa, mas, paradoxalmente, talvez só ela nos permita enxergar a urgência de rever nossa relação com o mundo real — esse mundo de rios e florestas que, na pandemia ou na enchente, implorou para ser incluído entre as nossas prioridades. Os alarmes, enfim, surtiram efeito: pela primeira vez na história recente, a força da natureza ganha espaço central em uma eleição, como mostra a pesquisa Quaest.
Vamos ver se os candidatos entendem que, sem cuidar do mundo lá fora, não há mundo presumido que resista.