Controlada pela bancada evangélica, a comissão da Câmara que analisa o projeto de lei conhecido como Escola sem Partido apresentou seu relatório na terça-feira: o texto proíbe a expressão "orientação sexual" e a palavra "gênero" em sala de aula.
Alguns trechos são tão disparatados que até fazem rir. Conforme o parecer, não há precedente algum que comprove que "uma sociedade sexualmente plural seja realmente sustentável a longo prazo". Porque "o que sabemos por experiência concreta é que uma cultura heteronormativa foi imprescindível à perpetuação da espécie humana e ao desenvolvimento da civilização ocidental".
Esses valores cristãos, tão evocados pela bancada evangélica, não vêm de Cristo
Quer dizer: se os professores ficarem, digamos, insistindo muito para a gurizada virar gay, todo mundo na face da Terra se tornará homossexual, ninguém mais se reproduzirá e a humanidade será extinta, o que, de fato, seria meio chato.
Eu aqui, sinceramente, adoraria passar a coluna inteira refletindo sobre o que Freud acharia disso – porque alguém que considera a orientação sexual um traço tão movediço, tão frágil e volátil, tão facilmente manipulável e suscetível à simples menção da palavra "gênero" em sala de aula, alguém com todo esse medo, por favor, só pode estar em parafuso com a própria sexualidade.
Mas isso aí, bem, um tratamento psiquiátrico resolveria. O problema é quando a justificativa para encarar os gays como seres tão aberrantes, capazes inclusive de impedir "a perpetuação da espécie humana", está nos tais valores cristãos. Como gostam dos valores cristãos. Vou mostrar de onde vêm ESSES valores cristãos que a bancada evangélica tanto evoca. Primeira dica: não vêm de Cristo.
O filósofo Roberto Romano, autor de livros como Brasil: Igreja contra Estado, revela que a expressão não foi cunhada pela doutrina cristã, mas por uma ideologia fomentada especialmente na Guerra Fria. Entre os anos 1950 e 1960, nos Estados Unidos, quando cresciam as tensões diplomáticas com a União Soviética, quando pastores carismáticos ganhavam programas de rádio e TV, quando movimentos por direitos civis explodiam em rebeliões, naquela época definiu-se que havia dois lados: o ateísmo comunista – considerado um perigo para o mundo – e a civilização ocidental cristã.
Essa espécie de orgulho cristão se radicalizou a ponto de ameaçar princípios fundamentais da Constituição americana – o principal deles: separação entre Estado e Igreja. Começava ali uma retomada da defesa do criacionismo no lugar da Teoria da Evolução, além de um movimento de resistência contra a emancipação da mulher e contra a igualdade de todos perante a lei.
Resultado: os tais "valores cristãos" espalharam-se pelo Ocidente como a antítese do comunismo e, a partir deles, instaurou-se uma série de ditaduras. O golpe militar no Brasil, por exemplo, em nome da civilização ocidental cristã, veio na esteira da histórica Marcha da Família com Deus pela Liberdade.
Em resumo, os valores cristãos não são os valores de Jesus Cristo. São apenas uma ideologia retrógrada e antidemocrática.
Jesus Cristo, não sei se vocês lembram, é aquele que conta a história, no Evangelho de Lucas, dos ladrões que espancaram, despiram e quase mataram um homem que descia de Jerusalém a Jericó. Passou por ali um sacerdote, depois passou outro, ambos viram o moribundo atirado no chão e nem deram bola. Mas um samaritano – os samaritanos eram um povo discriminado e detestado pelos judeus – sentiu pena do homem, atou-lhe as feridas, levou-o até a cidade e pagou seu tratamento.
Jesus aponta, ao final da parábola, em qual das três pessoas devemos nos inspirar. Nos sacerdotes, tão religiosos, ou no samaritano, tão discriminado? Ora, é fácil saber quem carrega os valores de Cristo.