Um malandro, esse deputado Jorge Tadeu Mudalen, do DEM de São Paulo. Na comissão especial da Câmara que discutia espichar a licença-maternidade para mães de bebês prematuros, ele era o relator. Aí, bem, os parlamentares acharam justo conceder uma licença de até oito meses para essas mulheres, mas o matreiro Mudalen decidiu incluir no texto um presente de grego.
Foi assim que a PEC da Licença-Maternidade virou a PEC do Aborto. A redação final da proposta estabeleceu o seguinte: os direitos constitucionais da dignidade humana, da inviolabilidade da vida, da igualdade de todos perante a lei, tudo isso passaria a valer "desde a concepção".
E, se existe vida inviolável "desde a concepção", então o aborto precisa ser proibido e combatido, inclusive nas circunstâncias em que hoje é legalizado: estupro, feto anencéfalo e risco de vida da mãe.
É quase impossível que essa redação prospere no plenário da Câmara, mas a manobra rasteira de Mudalen, que é um dos 198 deputados da bancada evangélica, levanta uma improrrogável reflexão. Existem duas linhas de pensamento avessas ao aborto – a primeira é carola, a segunda é ética. Na perspectiva carola, interromper uma gestação é interferir na vontade divina, é pecado, é matar um filho de Deus.
Não vejo problema algum nessa visão. É a crença da pessoa e ponto. Portanto, quando a filha dessa pessoa engravidar, ou quando essa própria pessoa – se for uma mulher – tiver de enfrentar uma gestação indesejada, aí certamente a criança nascerá e receberá o amor de toda a família, até porque ninguém nessa família desejará queimar nas labaredas do inferno.
Mas, se uma moça lá em Jijoca de Jericoacoara entender que vale a pena correr o risco de ir para o inferno, que raios a pessoa do parágrafo acima tem a ver com isso? Por que diabos sua fé precisa ser imposta aos outros?
– Mas os embriões são indefesos e precisam de proteção!
Pois fique sabendo que, em 2013, segundo estudo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 850 mil mulheres fizeram aborto ilegal no país – nem você nem ninguém vai conseguir proteger o que está dentro da barriga de outra mulher, porque, se tiver de abortar, ela vai abortar de qualquer jeito. A diferença é que, como bom cristão, talvez fosse interessante o cidadão ponderar:
– Se a moça vai mesmo fazer aborto, algo que reprovo e abomino, parece-me um pouquinho melhor que pelo menos ela não morra. Deus, então, haverá de julgá-la no momento certo.
No caso específico do aborto, parece clara a impossibilidade de se atingir um consenso no campo ético
E qualquer idiota sabe que a possibilidade de ela seguir viva é maior se o aborto for legalizado – e não realizado com agulha de crochê em qualquer fundo de quintal saburrento.
A segunda linha de pensamento é ética, não carola, e no meu entender é melhor do que a primeira. Muitos liberais, inclusive, são adeptos dela: dizem que não se pode reduzir o debate à "autonomia da mulher sobre o próprio corpo" quando existe uma segunda vida em discussão. Impedir alguém de nascer, portanto, não seria uma afronta a valores religiosos, mas a valores universais que regem qualquer sociedade civilizada.
Faz sentido, é verdade. A questão é que alguns princípios éticos, assim como a fé, também estão sujeitos a variações de pessoa para pessoa. É evidente que existem códigos sociais de conduta – alguns regidos pela lei, outros por um senso moral coletivo –, mas, no caso específico do aborto, parece clara a impossibilidade de se atingir um consenso no campo da ética.
Uma série de organismos internacionais garante que, até a 12ª semana de gestação, não há vida no útero materno. Outra corrente diz que a vida começa na concepção, como tentou nos empurrar o deputado Mudalen. Não seria razoável, neste caso, que as convicções éticas de cada um fossem um critério admissível? Eu, se considero o aborto antiético, não faço. Você, se não considera antiético, vai lá e faz.
O aborto legalizado, é importante entender, não faz imposição a ninguém. Já o aborto proibido, como defende a bancada evangélica, sempre vai fazer.