
Talvez seja um trauma das ditaduras, mas o fato é que brasileiro odeia regras de convivência. Elas soam sempre autoritárias.
Quando o cigarro foi vetado em aviões, depois em restaurantes, a classe intelectual teve chiliques. Também houve imensa resistência com a tolerância zero para quem bebe e dirige, além da proibição de bebida alcoólica em estádios de futebol. Foram leis que deram certo, mas elas não bastam: o brasileiro ainda é um brucutu no convívio em comunidade. A ausência de regras é tanta que, veja o contrassenso, alguns pedem a volta da ditadura.
Na terça-feira, revelei que a prefeitura de Porto Alegre estuda autuar – ou até interditar – bares da Cidade Baixa que permitirem que seus clientes saiam para a rua com cerveja ou qualquer bebida. A recepção foi horrível, leitores escreveram furibundos. Denunciaram um suposto atentado às liberdades individuais, além de uma afronta à tendência mundial de ocupação do espaço público.
Bem, existe outra tendência mundial: proibir as pessoas de beberem na rua. Roma fez isso há dois meses. Na Austrália é assim. Na Noruega também. E na Coreia do Sul e na Polônia e no Canadá e no Chile e no México. E em 24 Estados americanos – nos outros Estados, é no mínimo proibido ficar bêbado na rua; o cidadão vai dormir na cadeia.
E não há qualquer supressão de direitos nisso.
Aliás, eu aqui sou favorável à legalização da maconha, por exemplo. Mas, como ocorre na Holanda ou no Uruguai, deve haver locais para consumi-la. Pode-se fumar maconha em casa, inclusive. Na rua, não. Porque qualquer substância que altere o comportamento, a percepção ou a consciência de alguém, quando consumida no espaço público, pode afetar esse público. E, no espaço público – que é a área de convivência entre todos –, o interesse coletivo precisa estar à frente dos individuais.
Tive uma longa e produtiva conversa sobre o assunto com o advogado Alberto Kopittke, especialista e consultor em Segurança Pública. Kopittke ajuda a prefeitura de Pelotas a implementar a proibição do consumo de álcool em locais públicos – em Passo Fundo, essa norma já vigora há três meses.
Se o espaço público é para a convivência entre todos, extrair dele os fatores que desestabilizam essa convivência faz todo o sentido
– O álcool potencializa a violência, quanto a isso ninguém tem dúvida. Em todas as cidades onde seu consumo foi regulado, os índices de criminalidade despencaram. Por quê? Porque assim se evita um conjunto de pequenas violências que sugam muito tempo da polícia, como brigas, acidentes de trânsito e perturbação do sossego. Em tempos de violência endêmica, com poucos policiais na rua, é fundamental que a polícia se dedique ao que é mais importante, especialmente à noite: estupros, homicídios, crime organizado etc.
O que ocorre na Cidade Baixa é exatamente isso: a polícia ocupada com "pequenas violências" porque simplesmente não há regras de convívio dando conta da situação. No Carnaval ou em qualquer outro evento de rua organizado, tudo bem, que se venda e beba cerveja: há toda uma estrutura adicional para isso – e também não se pode ignorar nossa cultura, porque, quando se ignora a cultura, nenhuma lei pega. Mas no dia a dia é diferente.
Kopittke lembra o caso de Nova York, símbolo de metrópole violenta até 1994, quando foram aplicadas 400 mil multas por consumo de bebida alcoólica na rua. Em um ano, a taxa de homicídios caiu 35%. Quer dizer: as políticas de segurança pública podem ser preventivas, e não só punitivas – Nova York, aliás, foi a primeira cidade do mundo com mais de 1 milhão de habitantes a reduzir, além da violência, sua população carcerária. Aqui no Brasil, só se encarcera.
É evidente que não se resolve tudo arrancando o álcool das ruas. Mas, se o espaço público é o local para a convivência entre todos, extrair dele os fatores que desestabilizam essa convivência é uma medida lógica. E o álcool desestabiliza.