Qualquer seita, quando começa, tende a ser apocalíptica. Max Weber dizia isso. Só ela carrega a verdade, só ela merece a glória, só ela sabe das coisas — a partir daí, vem o fanatismo, a intolerância e a violência. Depois de um tempo, já estabelecida como doutrina, a seita concorda em conviver com outras seitas, incorpora princípios do Direito e vai se secularizando.
Boa parte das novas igrejas pentecostais, algumas mais jovens do que você e eu, ainda atravessa a fase apocalíptica. Seus sacerdotes rejeitam o ecumenismo, acusam católicos de idólatras, espíritas de perversos e umbandistas de filhos do Diabo. Há um farto acervo no YouTube mostrando isso. Representantes desse grupo, no Congresso, dedicam-se a impor suas convicções morais à sociedade inteira e trabalham há tempos para colher fiéis inclusive nas escolas. Vão conseguir.
Em um momento mundialmente marcado pela perseguição a credos e liberdades, a decisão do Supremo torna-se ainda mais escandalosa
Desde quarta-feira, quando o Supremo decidiu que um professor de ensino religioso pode, em um colégio público, representar uma religião específica, milhões de alunos estão sujeitos a proselitismo com dinheiro público. Alguém dirá que eu exagero. Pois agora mesmo, em setembro, uma série de ataques a terreiros de umbanda e candomblé, com pesadas agressões e ameaças a pais de santo, chocou o Rio de Janeiro — toda a ofensiva foi orquestrada por traficantes que se converteram a igrejas pentecostais quando estavam presos. A polícia investiga a participação de pastores.
Se o discurso desses pastores cola com traficantes, que efeito causaria em estudantes? Aliás, no ensino municipal do Rio, onde o prefeito é justamente um pastor pentecostal, quem a ministra Cármen Lúcia — autora daquele irresponsável voto de Minerva — acredita que terá influência nas comunidades para ministrar aulas cuja pregação da fé é permitida? Um rabino? Um brâmane? Um padre? Um pajé?
Quando ingressou com a ação na Corte, a intenção da Procuradoria-Geral da República era justamente acabar com uma prática nada laica sobre a qual nenhuma lei arbitrava: o ensino público hoje pode fazer parcerias com igrejas ou instituições religiosas para contratar professores. Além de liberar essa incongruência, o Supremo indiretamente limitou a atuação da escola. Que poder terá um reles diretor de colégio para exonerar um professor doutrinário se o próprio Judiciário o autoriza?
Ao obrigar todos os contribuintes — sejam eles cristãos, judeus, umbandistas ou ateus — a bancarem uma catequese com seus impostos, a decisão do Supremo por si só já é escandalosa. Em um momento mundialmente marcado pela perseguição a credos, ideologias e liberdades, a sentença torna-se tão apocalíptica quanto boa parte das novas igrejas pentecostais.