Você tem boas intenções, claro. Todo mundo tem. Posso discordar da sua conduta, dos seus objetivos, do monte de bobagem que você insiste em repetir, posso discordar do seu voto e da maneira como educa seus filhos, mas, ainda assim, sei que tudo é feito com boas intenções. O inverso também vale: é possível que você me considere um completo débil mental, mas garanto que bem-intencionado – pelo menos isso – eu sei que eu sou.
Todos somos. Tanto as burradas mais triviais quanto aquelas que devastam um país inteiro, a maioria delas não é cometida por psicopatas ou por gente necessariamente má. São, em geral, fruto de avaliações equivocadas, às vezes estúpidas, mas ainda assim bem-intencionadas.
Esse caso do Laçador, por exemplo. Conversei dias atrás com técnicos envolvidos na restauração do monumento – de 10 anos para cá, o símbolo de Porto Alegre começou a exibir rachaduras. Pequenas fendas se espalham da bombacha ao pescoço da célebre estátua, e dentro dela vão se imiscuindo insetos, vegetação e água.
Como é que o Laçador aguentou todo tipo de intempérie por quase cinco décadas e, agora, sucumbe à ruína? É que lá em 2007, quando o monumento foi transferido de lugar, alguém inventou de preencher suas pernas com concreto. O intuito, ao que tudo indica, era tornar a estátua mais resistente a vendavais, já que originalmente ela era oca. Quer dizer: havia boa intenção naquela ideia, ainda que a ideia fosse de uma imbecilidade atroz.
Porque o concreto começou a se dilatar com calor e chuva, e assim as fissuras foram se abrindo no bronze do Laçador. Em resumo, dilaceraram um ícone da cidade com a intenção de protegê-lo. É bem comum isso, dilacerar tentando proteger.
Eu realmente acredito que, na cabeça dos militares, em 1964, eles queriam proteger a democracia embora a tenham dilacerado. Imagine o contexto: auge da Guerra Fria, o mundo dividido em dois, os comunistas avançando com seus regimes sem liberdades, sem garantias, sem voto, sem oposição.
– O senhor tem que assumir este país, general! – incitavam os empresários, e a classe média aplaudia, e os Estados Unidos apoiavam, e o presidente João Goulart prometia traumáticas reformas, fazendo muita gente chamá-lo de comunista. – O senhor é honesto, general, o senhor vai nos salvar, só as Forças Armadas podem acabar com essa ameaça!
E pronto: tchau, Jango. Como se sabe, os militares deveriam devolver o governo aos civis logo em seguida, mas se refestelaram no poder por 21 anos, implantando um regime – adivinhe? – sem liberdades, sem garantias, sem voto, sem oposição. Bem-intencionados? Não duvido que fossem lá no início, mas deram um golpe na democracia, portanto erraram, e depois ainda torturaram, perseguiram e mataram.
Boas intenções são boas apenas para nortear intenções. Não são suficientes para nortear atitudes
Até no escândalo do mensalão, se quisermos procurar, vamos encontrar boas intenções. Lula, Dirceu e sua trupe acreditavam de verdade que suas ideias, sozinhas, sem mais ninguém se metendo, seriam a salvação do Brasil. Para não dividir cargos nem decisões com a turma do Congresso – que, na lógica petista, não aceitava priorizar os mais pobres –, a saída era dar dinheiro para todo mundo.
Quer dizer: a superioridade moral do PT era superior até à democracia.
As boas intenções estão presentes em equívocos, em absurdos, em grosserias, em infrações de trânsito, em corrupções cotidianas, em crimes de colarinho branco, em golpes de Estado, em praticamente todas as besteiras que um ser humano é capaz de fazer. Portanto, boas intenções são boas apenas para nortear intenções – não são suficientes para nortear atitudes. Boas atitudes precisam de reflexão, conhecimento sobre o assunto e, de vez em quando, de alguma consideração às opiniões dos outros.
Tenho pensado sobre isso quando vejo Jair Bolsonaro. Sei que seus potenciais eleitores têm intenções irretocáveis: querem segurança pública, leis rigorosas, moralidade no poder, intolerância com o crime, querem um presidente que inspire disciplina em um país esculhambado. Mas tenho esperança de que, até a eleição de outubro, com mais reflexão, conhecimento e consideração à opinião dos outros, quem sabe eles percebam que boas intenções, aqui, não servem para nada.