É fácil esquecer que as conquistas feministas são recentes. Difícil é encarar que, faz pouco, era natural ser cidadã de segunda classe. A vergonha do passado é uma espécie de vergonha alheia.
O feminismo briga por elas, mas independe da feminilidade, assim como o machismo tampouco garante a virilidade de ninguém.
Acostumamos rápido com o bem-estar, nosso corpo esquece os incômodos e não temos memória da dor. Se você comprou um fantástico colchão novo, depois de anos sofrendo entre os desvãos e buracos do velho, ficará embevecido nas primeiras noites. Logo deitará em seu leito de nuvens como se tivesse nascido ali, esquecido do contraste. É assim com as conquistas feministas. As brasileiras casadas podem votar desde 1932, mas só nos tornamos de fato eleitoras – no sentido do voto obrigatório e universal – em 1946. Minha mãe já tinha 10 anos.
Não confunda: feminilidade é ser, ou sentir-se como, uma mulher. Identidade de gênero que não equivale à maternidade, nem às roupas que se usam. Já o feminismo é a luta contra a opressão da mulher. O feminismo briga por elas, mas independe da feminilidade, assim como o machismo tampouco garante a virilidade de ninguém.
O “colchão velho” das mulheres está logo ali, quase ontem. Eu já tinha 11 anos quando ocorreram os eventos narrados por Spielberg no filme The Post. Assistir ao filme foi mais um lembrete de quão recentes são as conquistas feministas.
Na história, a socialite Katharine Graham, frequentadora da Casa Branca, era uma acomodada mãe de família quando, após o suicídio do marido, assumiu a direção do jornal do pai dela, o Washington Post. No cargo, coube-lhe a dramática decisão de publicar, ou não, os Papéis do Pentágono. Eram documentos vazados que denunciavam há quantos anos o governo americano sabia que a guerra do Vietnã estava perdida, mas continuava enviando soldados para a morte. Katharine teve que se opor ao governo, onde estavam seus melhores amigos, assim como aos acionistas e advogados do jornal. Todos a pressionavam para recuar, mas ela foi adiante, alimentando o movimento pacifista.
Spielberg colocou o acento na naturalidade da opressão masculina, assim como da conformada submissão da protagonista a ela, ressaltada pela interpretação impecável de Meryl Streep. A voz de uma mulher era inaudível, mesmo sendo dona e diretora do jornal. Não faz nem 50 anos.
Na porta do tribunal, após ela e outros dirigentes da imprensa conquistarem a sentença que viabilizou a publicação, os jornalistas envolvem ruidosamente os protagonistas homens. Katharine, figura decisiva no episódio, sai sem ser notada. Ela passa por um corredor de outras mulheres, que a acolhem com recatados gestos de admiração.
Ontem e hoje, ainda há tantas e tão mais dramáticas dessas histórias. Literalmente, ontem as mulheres sauditas conquistaram o direito de dirigir.