Para uns, é medida saneadora, que disciplina a coisa pública e enxuga o Estado para tratar do que é mais importante. Para outros, é perseguição de um grupo político que chegou ao poder e é adversário frontal dos antecessores.
O fato é que o novo presidente da Argentina, Mauricio Macri, está promovendo uma debandada da máquina pública, seja no Executivo ou no Legislativo, cujo presidente é o vice. No caso, a vice, Gabriela Michetti.
Pois bem, as tais demissões a rodo chegaram a um ponto que certamente vai provocar barulho. Alex Freyre, um kirchnerista de carteirinha e ferrenho adversário do novo presidente, foi exonerado.
Claro, até pelos vínculos políticos e por ser um funcionário de confiança, nada mais natural que isso ocorresse. Ainda assim, o tema provoca polêmica.
Mas quem é Freyre? É um um militante gay wque ganhou notoriedade ao ser protagonista do primeiro casamento homoafetivo da América Latina - com seu companheiro José María di Bello. É um símbolo da diversidade.
Os dois formam um ícone da busca pelos direitos individuais.
Este colunista entrevistou Freyre três vezes: uma vez para uma reportagem de Zero Hora, quando ele havia se casado com Di Bello. Outra para o blog Território Latino (antecessor desta coluna), quando ele falou da vida de casado quatro anos depois. E uma terceira para o livro "Coligay - Tricolor e de todas as cores" (Editora Libretos, 192 páginas), na qual ele elogiou a coragem e o pioneirismo da organizada gremista em plena ditadura militar. Na mesma entrevista, ele disse ser torcedor do Boca Junior e ir à Bombonera só agora com suas bandeiras, a do movimento gay e a do time.
O nome de Alejandro Daniel Freyre - o "Alex" - apareceu no Diário Oficial como um entre tantos exonerados. Ele havia sido contratado para trabalhar no0 Senado em 2012, pelo presidente da Casa (e vice-presidente da República) Amado Boudou. É um dos 374 exonerados no Senado.
A justificativa de Michetti: no decreto sobre as demissões "O exercício racional da contratação de pessoal não pode implicar um crescimento desmedido e injustificado de empregados públicos, que não obedeça a uma estrita necessidade para o funcionamento deste Senado." "Durante o transcurso dos últimos anos, ditaram-se diversos atos administrativos nomeando agentes sem respeitar os princípios antes enunciados."
Alex Freyre conduzia um programa na TV Senado.
Entrevista que fiz para o blog Território Latino em 2013:
Os argentinos José María di Bello e Alex Freyre são o primeiro casal gay a contrair matrimônio na América Latina. Isso ocorreu em dezembro de 2009. Como está a vida dos dois? No cotidiano, nada mudou. A novidade na vida deles é a exposição pública. Resultado disso: Alex será candidato a deputado nacional, e Di Bello está costurando sua candidatura também, mas para legislador da cidade autônoma de Buenos Aires, a capital federal argentina, que tem status de província.
Leia a entrevista que fiz com Alex:
_ Como está a vida de casado, desde dezembro de 2009 até hoje?
_ Depois de termos casado, nossa vida não mudou em termos de cotidiano. Já vivíamos juntos, já criávamos três crianças, continuamos como antes acordando, tomando nosso chimarrão e indo trabalhar. Isso, então, não mudou. As mudanças que ocorreram ocorreram em dois planos. Por um lado nossa visibilidade aumentou, porque nosso casamento foi uma conquista histórica, a conquista jurídica e legal de homossexuais poderem se casar. Esse aumento de visibilidade fez com que possamos nos expressar mais facilmente. Recebemos retornos de apoio, de carinho e de gente que não está de acordo com alguma coisa. Também entramos no debate político partidário.
_ Como se dá essa relação com a política?
_ Com a visibilidade que aumentou, também aumentaram as potencialidades para militarmos em outras agendas. Não é por ser gay nem por sermos os primeiros a nos casarmos, mas mais pela militância de 31 anos, a presidente Cristina Kirchner me convocou para ser candidato a deputado nacional. É um resultado da visibilidade que mostrou nossa capacidade de discutir política.
_ Você será candidato nas eleições legislativas de outubro, pela Frente para a Vitória?
_ Exatamente, pela Frente para a Vitória.
_ Somente você? E José María?
_ José María, nos próximos dias, deve integrar a lista de legislador municipal, na cidade de Buenos Aires. Tratará de uma agenda mais local que a minha. Mas a lista está sendo definida. Ele será deputado local da capital federal, se tudo der certo. Temos um grupo dentro da Frente para a Vitória, que eu e José María integramos. O nome do nosso grupo é Movimento de Interação Latino-Americana. José María vai representar esse grupo.
Trecho de Coligay - Tricolor e de todas as Cores, com depoimento de Freyre:
(...)
Conversei com o argentino Alex Freyre, torcedor do Boca Juniors, que se casou com o também argentino José María di Bello, por sua vez torcedor do rival Ríver Plate. Em dezembro de 2009, os dois protagonizaram o rumoroso primeiro casamento gay da América Latina. Foram capas de jornais e motivo de intensos debates, como se sua ousadia íntima pudesse fazer mal a alguém.
Ao ser questionado sobre a Coligay, o pioneiro Alex definiu a iniciativa dos pioneiros brasileiros como uma "valentia", não só por eles serem homossexuais, mas por serem homossexuais e se organizarem num grupo assumido para torcer pelo seu time em meio a uma ditadura.
Leia a conversa que tive com Alex Freyre a respeito da Coligay. Perguntei-lhe sobre a iniciativa dos rapazes gaúchos naquele momento histórico de restrição das liberdades na América do Sul:
– As ditaduras militares da América Latina, entre as quais estavam as do Brasil e da Argentina, tiveram a Operação Condor (aparato repressivo compartilhado pelos diferentes países da região com seus governos autoritários), e os homossexuais eram perseguidos por serem homossexuais. Houve muitos homossexuais perseguidos, presos, torturados, desaparecidos, exilados. A grande maioria vivia escondida. A valentia de alguns, como eles, se sobrepôs a isso tudo e deve ser recordada, como você está fazendo. Contar isso é importante, porque o relato histórico sempre foi heterossexista. Recém agora começam a ser recuperadas essas histórias. Na Argentina, não há ainda esses relatos, há relatos de torcidas de futebol que protegeram militantes que estavam escapando da perseguição militar, mas a homofobia sempre foi grande nesse meio.
– A Coligay durou seis anos...
– Sim, eles foram corajosos e valentes, foram de uma valentia extraordinária. Durante a ditadura, havia perseguição e extermínio de homossexuais. E havia também medidas culturais para montar uma imagem negativa dos homossexuais. Toda a publicidade de TV e as telenovelas, nas escolas... Faziam isto: procuravam mostrar o homossexualidade como perigosa. Organizar uma torcida como eles fizeram aí, no ambiente machista do futebol, é, sem dúvida, um ato não só de valentia, um ato que rompe uma cultura. Foi um ato político o que eles fizeram.
Alex conta que há um ano passou a frequentar a Bombonera, o estádio do seu Boca. Só agora se encorajou a fazer isso do jeito que sempre quis. Leva para o estádio duas bandeiras: a multicolorida do movimento gay e a azul e amarela da tradicional equipe "xeneize". Os demais torcedores do Boca já começam a se acostumar com sua transgressão, uma iniciativa individual que, quase 40 anos depois, é similar à dos rapazes gremistas.
– Me dei conta: a maioria dos homossexuais gosta de futebol. Não devem se reprimir de ir à cancha. Quando vou à cancha, observo e participo da homofobia coletiva contra o clube adversário.
– Opa, como assim???
– Faço isso com picardia, desnaturalizo o insulto. Quando os torcedores do Boca dizem que vão foder o adversário e riem, eu penso: quando um diz que vai foder o outro, ele participa dessa foda, é uma relação sexual. Quando chamam os outros de putos, estão dizendo, "aqui tem um puto também, aqui tem um puto também, também somos putos".