Causou rebuliço no início da semana a antecipação do obituário da rainha da Inglaterra pela Folha de S. Paulo, numa gafe jornalística que rendeu críticas e deboches a um dos principais jornais brasileiros. Em tempos de notícias instantâneas, não é de estranhar tanto assim que alguém tenha apertado a tecla errada e dado visibilidade a um texto preparado com antecedência para ficar arquivado até o dia em que God efetivamente chamar The Queen.
Matéria de gaveta é o nome da coisa no jargão jornalístico. Quem já passou por uma redação de jornal, principalmente quem viveu as transformações tecnológicas dos veículos de comunicação, sabe bem ao que estou me referindo. No tempo em que os impressos eram soberanos, as reportagens escritas com antecipação, principalmente os obituários de pessoas famosas, ficavam efetivamente numa gaveta – muitas vezes fechada com uma chave que o editor da área pendurava no pescoço para não correr riscos.
Agora ficam num arquivo de texto, numa pasta de computador. Não é incomum que mais de uma pessoa tenha acesso ao material, até mesmo para que qualquer redator de plantão possa atualizar e publicar quando for necessário. Aí algum distraído abre a gaveta digital, clica no arquivo errado e – pimba! – lá vai para o mundo sem limites da web uma notícia com potencial para transformar príncipe em rei – e jornalista precipitado em sapo.
Sob pressão permanente do horário de fechamento, não é raro que jornalistas se antecipem aos fatos em narrativas que dependem de confirmação para serem publicadas. Na reportagem esportiva, por exemplo, cansamos de preparar notícias com os três resultados possíveis de um jogo ainda em andamento – duas delas com carga para sinistros que, em se tratando de futebol, assumem proporções inimagináveis.
Mas a principal notícia de gaveta é mesmo o obituário, pois, cedo ou tarde, o fato se confirma tanto para famosos quanto para anônimos. A diferença é que as celebridades já estão engavetadas. Quando uma escapa antes do tempo, o público se diverte, mas os jornalistas sofrem – principalmente aqueles que se esforçam para transformar simples registros de morte em atraentes histórias de vida.
Aos 95 anos, a rainha Elizabeth II deve ter obituários prontos nas gavetas digitais de todos os jornais do mundo, muitos deles, provavelmente, escritos por obituaristas que se anteciparam a ela na viagem sem retorno.