Olho o pesadelo iluminado na televisão da minha sala e custo a me convencer de que aquilo é verdade: tanques, mísseis, bombas de fragmentação, prédios destruídos, sangue na neve, vidas destroçadas, seres humanos em fuga, famílias separando-se, desespero – um apocalipse localizado e provocado pela estupidez do nacionalismo, pela sede de poder e por uma fome de prepotência que se retroalimenta de tempos em tempos.
O que posso, isoladamente, fazer diante de tamanha catástrofe humanitária, além de lamentar, rezar e digitar? No pretérito imperfeito de minha juventude, até empunhei mosquetões, pistolas e metralhadoras por conta do serviço militar obrigatório, mas faz tempo que assumi comigo mesmo o compromisso de usar apenas a palavra como arma e munição.
Então, embora possa parecer quase covardia numa hora tão sombria, recorro à poesia. E Thiago de Mello me auxilia:
Faz escuro, mas eu canto, porque a manhã vai chegar. Vem ver comigo, companheiro, a cor do mundo mudar.
Vale a pena não dormir para esperar a cor do mundo mudar. Já é madrugada, vem o sol, quero alegria, que é para esquecer o que eu sofria. Quem sofre fica acordado defendendo o coração. Vamos juntos, multidão, trabalhar pela alegria, amanhã é um novo dia.
Um dia certamente virá este sol da liberdade em raios fúlgidos que tanto costumamos cantar por aqui, mas que parece cada vez mais eclipsado na massacrada Ucrânia. Por quê? É de uma brasileira de origem ucraniana, a paranaense Helena Kolody, que tomo emprestadas as próximas palavras.
Deus dá a todos uma estrela. Uns fazem da estrela um sol. Outros nem conseguem vê-la.
Especialista em haicais, essa filha de ucranianos falecida em 2004, aos 91 anos, também deixou poemas ternos sobre o cotidiano da paz, como este, emblematicamente denominado Lição:
A luz da lamparina dançava frente ao ícone da Santíssima Trindade. Paciente, a avó ensinava a prostrar-se em reverência, persignar-se com três dedos e rezar em língua eslava. De mãos postas, a menina fielmente repetia palavras que ela ignorava, mas Deus entendia.
Tão bonito que até arrisco meu próprio haicai: a dor e o amor não precisam de tradutor.