Reflexões de um filósofo de botequim que sequer frequenta botecos. Estou cada vez mais convencido de que todos os males destes tempos desconcertantes, os desgovernos em série, a corrupção dentro e fora da política, a criminalidade, as drogas, a truculência no trânsito, a mulher que empurra a outra por torcer para clube diferente do seu, a espionagem digital e a hipocrisia oficial, o autoritarismo, o quase fascismo, o narcisismo, o clubismo, o nepotismo e outros ismos que não me ocorrem no momento, tudo isso tem origem no umbigocentrismo – que é um apelido menos aristocrático para egoísmo.
A tecnologia escancara esse culto ao próprio umbigo, representado pela telinha enfeitiçada que todos carregamos na palma das mãos e que reflete a nossa imagem, o nosso grupo, os nossos amigos, as mensagens que nos agradam, as nossas opiniões e a nossa visão de mundo. Tem sido difícil sair desse círculo vicioso. Como cada indivíduo está aparelhado para impor os seus conceitos e preconceitos, há cada vez menos tolerância com as diferenças, com o contraditório, com o direito dos outros. E eles são – como advertiu ironicamente o filósofo Sartre – o inferno.
Então, em contraposição e para não cair em depressão, este escriba poliânico prefere acreditar que existe também ao menos um purgatório para a gente reumanizar os nossos conflitos. É um espaço mental, cultural e educacional para a necessária reflexão sobre os nossos procedimentos rotineiros.
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Olhar para o próprio umbigo deveria ser um gesto de civilidade, de reconhecimento ao outro, de gratidão e pertencimento
Lembram-se daquele comercial de chinelos em que uma bela atriz aparecia de biquíni branco e sem qualquer sinal de umbigo na barriga chapada? Pois é, depois da repercussão, a agência responsável explicou que houve um problema no processo de conversão de imagem e acabou republicando o vídeo com a devida cicatriz no seu lugar. Também há casos conhecidos de pessoas que, depois de cirurgia plástica abdominal, acabaram ficando sem a marca de nascença. São exceções, quase aberrações, na espécie sapiens.
O normal é nascermos com o cordão que nos alimentava durante a gestação e que, uma vez rompido, deixa a marca indelével da nossa interdependência e do nosso vínculo com outro ser humano. Olhar para o próprio umbigo, ainda que simbolicamente, deveria ser um gesto de civilidade, de reconhecimento ao outro, de gratidão e pertencimento. Temos, sim, potencial para redefinir esse significado.
Prova disso é a corrente de solidariedade que se segue a cada episódio de injustiça ou crueldade, como no recente caso das torcedoras de futebol. De acordo com estudiosos dos pontos de energia do corpo, é no umbigo que se localiza o nosso poder pessoal. Usemo-lo, pois, colocando em prática esse exercício de desapego das nossas crenças e crendices chamado empatia – colocar-se sempre no lugar do outro.
Um filósofo de verdade, Confúcio, resumiu esse propósito numa só palavra: reciprocidade. Fazer ao outro o que gostaríamos que nos fizesse.