Nestes tempos em que uma enciclopédia colaborativa escrita e reescrita diariamente a muitas mãos se tornou a principal fonte de consulta de parcela expressiva da humanidade, não é de admirar que os ocupantes do poder político se julguem autorizados a adaptar a história do país às próprias convicções. Vivemos a cultura do efêmero. Se algum registro histórico nos incomoda, deletamos e elaboramos outro, de acordo com a nossa vontade e as nossas crenças. Não são apenas os poderosos que fazem isso. Qualquer indivíduo conta hoje com instrumentos suficientes para divulgar a versão edulcorada da própria vida – e para refazer o passado conforme sua imaginação.
Para não parecer implicante, dou um exemplo recente fora da esfera de poder constituído. A Mangueira, escola de samba vencedora do último Carnaval no Rio de Janeiro, substituiu heróis do Panteão da Pátria por personagens pouco mencionados nos livros de História, mas reconhecidos pela população, especialmente pela parcela mais humilde. Inspirados no enredo História para Ninar Gente Grande, os carnavalescos rebaixaram literalmente generais e marechais ao mesmo tempo que promoveram índios, caboclos, escravos, artistas e lideranças populares de vários matizes. Fica um gostinho de justiça social, sem dúvida, mas não deixa de ser uma tentativa de reescrever a história oficial.
Com propósito semelhante, um ministro recentemente destituído anunciou a revisão de conteúdos de livros didáticos para renomear o período conhecido como “ditadura”, substituindo-o por “regime democrático de força”. Mais pelas trapalhadas administrativas do que pelo eufemismo forçado, o homem acabou sendo convidado a se retirar do governo, mas seu projeto retificador não foi defenestrado junto. Pelo contrário, tem gente mais poderosa do que ele convicta de que é preciso contar outra história do Brasil às futuras gerações. Sabe-se lá o que mais tentarão modificar. Antes que o façam, é bom que considerem o ensinamento de Shakespeare: ignorar os fatos não os altera.
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Se não for rebaixado a simples agitador por algum ministro messiânico, Tiradentes voltará a ser reverenciado no próximo domingo como principal herói nacional. Foi o que aprendemos nos livros escolares, os quais, na minha infância, assustavam as crianças com a imagem daquele barbudo com o laço de corda em torno do pescoço. Pior: autores e professores faziam questão de relatar minuciosamente a decapitação e o esquartejamento do condenado. Lembro-me até hoje de um detalhe digno de filme de terror: sua cabeça, exposta ao público em Vila Rica, acabou sendo roubada e nunca mais foi encontrada.
Tiradentes virou herói mais pelo martírio do que propriamente por sua bravura, ainda que tenha se destacado neste quesito entre os insurgentes de então, a maioria intelectuais e poetas. Na verdade, tem sido mais lembrado pelo feriado que proporciona do que por sua ação patriótica. Os sambistas até tentaram melhorar sua imagem: “Foi traído e não traiu jamais...”. Mas nunca vi uma criança dizendo que queria ser como Tiradentes.