Por Everton Cardoso*
A Sapucaí, de fato, é um lugar onde há algo de inexplicável: eu, que não tenho lá um dos melhores fôlegos, fui capaz de cantar o samba-enredo da minha Estação Primeira de Mangueira do começo ao fim do desfile. "Brasil, chegou a vez / De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês", dizia a letra do trecho em que a bateria fazia suas paradinhas.
Cada vez que isso acontecia, vinha à minha mente a imagem que tinha visto instantes antes de entrar na avenida: a integrante da comunidade que é responsável pela harmonia e pela evolução da escola nos ensinava que nesse trecho deveríamos erguer os punhos cerrados e movê-los pra frente e pra trás no ritmo da melodia e explodir, ao final, no verso seguinte. Não ousei contradizer a sabedoria do povo do samba: "Mangueira!", gritava logo depois num coro com o público das arquibancadas. Durante os pouco mais de 75 minutos de desfile não me faltaram pulmões. A não ser nas raras ocasiões em que olhava pra trás.
O nó na garganta vinha sempre que avistava a jornalista carioca Hildegard Angel sobre o último carro alegórico que vinha no desfile, logo atrás da centena de "Retratos de Tiradentes" que eu integrava. Ela usava um vestido preto igual ao de sua mãe, a estilista Zuzu Angel, em sinal de luto pelo desaparecimento do filho Stuart Angel Jones em 1971. No pescoço, a destaque do carro trazia um colar com dezenas de pingentes de cruzes. Era da mãe e lembrava os desaparecidos políticos durante os anos de chumbo no Brasil. "Ditadura assassina", dizia a pichação numa foto em preto-e-branco reproduzida nas páginas de um livro gigante.
A alegoria, em seu todo, foi dos grandes momentos de genialidade do carnavalesco Leandro Vieira: lá também estavam outros livros gigantes em que professores de escolas de ensino médio e fundamental reescreviam a história de personagens como Duque de Caxias, José de Anchieta e Floriano Peixoto. Ora, que gesto esse do artista! Em tempos em que professores se veem ameaçados de censura na sala de aula, essa é uma reverência monumental.
Monumento, aliás, foi outro símbolo importante que Vieira usou para nos chamar ao "país que não tá no retrato". Numa alegoria, a escultura gigantesca de Victor Brecheret que celebra expedições dos bandeirantes em São Paulo era reproduzida em dourado, mas vinha pichada de vermelho – o sangue retinto pisado a que o samba-enredo faz referência. Ao redor, placas denunciavam o quanto foram sanguinários esses exploradores tornados heróis pelo discurso oficial: "tupinambás", "mulheres", "tamoios", "Funai", diziam os sinais que juntavam os muitos apagamentos de ontem e de hoje.
A frieza das notas 10 (e foram muitas as anunciadas pela já conhecida voz de Jorge Perlingeiro na Quarta-feira de Cinzas) não dá a dimensão do que foi o desfile: a chegada à Praça da Apoteose foi linda demais. Diante daquele delírio genial de Darcy Ribeiro e de Oscar Niemeyer para reverenciar a cultura popular brasileira, chegava a multidão verde e rosa com seus heróis – Sepé Tiaraju, Cunhambebe, Chico da Matilde, Luísa Mahin, Zumbi e Dandara dos Palmares e tantos outros. Na última ala, bandeiras gigantes, daquelas que se vê tremular nos estádios, traziam Jamelão, Carolina Maria de Jesus, Muçum, Marielle Franco, Cartola e outros heróis dos barracões. Em se tratando de Brasil, a referência às torcidas – que endeusam ídolos e coroam reis no futebol – é mais um toque de genialidade sutil do idealizador desse espetáculo.
E pra quem anda dizendo por aí que enredos críticos são "modismo" e "oportunismo", é preciso dizer que isso não é novidade na verde-e-rosa: em 1988, a Mangueira já perguntava se a libertação dos escravos era realidade ou ilusão ("Livre do açoite da senzala / Preso na miséria da favela"); e em 2002, ao homenagear o Nordeste bradava "pau-de-arara nunca mais".
Dirão por aí que estas minhas impressões são parciais. Não tenho a menor dúvida, afinal desde sempre sei cantar "Tem xinxim e acarajé / Tamborim e samba no pé", do samba que homenageou Dorival Caymmi em 1986. E agora fica uma nova frase pra encher meus olhos sempre que ecoar o samba de 2019 na memória: "Mangueira, tira a poeira dos porões / Ô, abre alas pros teus heróis de barracões / Dos Brasis que se faz um país de Lecis, Jamelões."
* Jornalista e professor universitário