Um dia, lá pelo final dos anos 1800, aquela centelha inquieta que habita o cérebro humano – e que parece ter vida própria – fez uma proposta tentadora para os habitantes da época:
– Que tal uma máquina que trabalhará por vocês, abreviará as distâncias, transportará cargas e pessoas e superará, com velocidade inimaginável, os obstáculos do tempo?
E o Homo autodenominado sapiens, sempre curioso e ansioso por novas aventuras, topou sem ler as letras pequenas do contrato. Alertavam as entrelinhas que a nova maravilha também transformaria a superfície do planeta, encravando-lhe ruas asfaltadas, avenidas e viadutos, consumiria seus recursos naturais, poluiria o meio ambiente e, o mais dramático, exigiria vidas humanas, milhares delas todos os anos, em troca da facilidade e do conforto oferecidos.
Mesmo assim, o automóvel se transformou no senhor das ruas e no objeto de desejo das gerações vindouras. Mais de cem anos depois, insaciável, o grilo falante da imaginação voltou a assoprar nos ouvidos incautos dos macacos falantes:
– Que tal uma maquininha mágica, que cabe na palma da mão e permite que qualquer indivíduo, em qualquer lugar do planeta, possa acessar a informação desejada, passar mensagens, captar e editar imagens, registrar opiniões e disseminá-las instantaneamente, podendo ainda ser utilizada até para falar com outras pessoas próximas ou distantes?
Mais uma vez, os humanos caíram na tentação, sem perguntar o preço nem procurar advertências nas letrinhas minúsculas do imenso contrato digitalizado, até mesmo porque ninguém mais tinha paciência para ler textos longos. E o novo aparelhinho conquistou corações e mentes, tanto que as pessoas dormem e acordam com ele, tomam café da manhã com ele, almoçam com ele, caminham com ele e, em muitos casos, até dirigem o famigerado automóvel sem tirar os olhos (e os dedos) da telinha luminosa.
Ainda não se tem certeza sobre todas as contrapartidas digitadas em corpo de fonte quase invisível, mas uma delas fica cada vez mais evidente: o celular, smartphone, ou seja lá que nome se queira dar ao brinquedinho viciante, exige em troca da sua mágica toda a atenção das pessoas, inclusive aquela que antigamente se dispensava a familiares, amigos e demais afetos. Demos um passo atrás na evolução humana: o Homo erectus voltou a caminhar (e a sentar-se) com a cervical curvada para poder enxergar a própria mão e o movimento frenético dos polegares na digitação incessante.
Aquele desenho tradicional do primata avançando para a civilização, sempre um prato cheio para os caricaturistas, passa a ter na dianteira o homem tecnológico, braço semiestendido e pescoço flexionado, concentrado na própria bolha de amizades ou em algum vídeo engraçadinho. Assim, hipnotizada, caminha a humanidade – isso quando não fica retida por horas nos engarrafamentos de finais de semana. Digitando no celular, evidentemente.