Considero-me um razoável interpretador de textos, pela longa rodagem nas estradas do meu ofício, mas acho que teria de chutar naquela questão do Enem sobre a linguagem chamada pajubá. Para quem não participou da prova nem leu a respeito da polêmica gerada pelo tema, explico: trata-se de um dialeto utilizado por travestis, inspirado na cultura africana. Aprendi isso nesta semana, lendo o enunciado da referida questão.
Li, também, comentários furiosos na sequência das reportagens publicadas, alguns indignados com a presença do tema no exame, outros críticos ao destaque dado ao assunto pela mídia e muitos, infelizmente, sugerindo a violência e a censura contra os usuários do original palavreado. Bah, tchê, deixa os vivente falar! Não temos a nossa linguagem gaudéria, que só quem é daqui entende? E o simpático porto-alegrês do professor Fischer? Nessa Torre de Babel, há espaço suficiente para todos e todas.
Além disso, só mesmo sendo muito turrão para não achar graça na existência de uma "dicionária" chamada Aurélia, que é onde o pajubá está sistematizado.
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Comecei minha carreira jornalística num tempo em que os jornais (alguns jornais) publicavam fictícias previsões do tempo, receitas culinárias e poemas de Camões no lugar das matérias que não passavam pelo crivo dos censores. Pessoalmente, nunca fui censurado, até mesmo porque escrevia sobre futebol, que era e continua sendo a principal válvula de escape dos brasileiros em momentos de estresse político e econômico. Não que o esporte estivesse livre de interferências do Estado autoritário. Basta lembrar o emblemático episódio em que um general-presidente tentou escalar o centroavante da Seleção.
– Ele escala o ministério, eu convoco a Seleção – retrucou o treinador João Saldanha, sendo demitido do cargo duas semanas depois e perdendo a oportunidade de comandar o time tricampeão no México.
O gaúcho Saldanha, que ganhou do escritor Nelson Rodrigues o apelido de João Sem Medo, foi também um mestre na criação de frases de efeito e gírias futebolísticas. O comentarista que o Brasil consagrou, como era anunciado no rádio, falava um verdadeiro saldanhês. E era compreendido: os torcedores adoravam, especialmente os geraldinos.
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Se convivemos pacificamente com o politiquês, o economês e o juridiquês, entre outras linguagens específicas de grupos afins, por que não aceitar o pajubá como jargão próprio de uma categoria? Sinceramente, não me incomoda. Sinto-me, inclusive, desafiado a decifrá-lo, como tenho feito com a terminologia de TI (Tecnologia da Informação) por necessidade de sobrevivência num mundo cada vez mais digital.
Só não consigo compreender essa crescente e assustadora linguagem da intolerância, que tenta calar as vozes diferentes porque acredita que somente a sua faz sentido. Mas acho que todos e todas, inclusive os intolerantes, têm o direito de se manifestar. Em qualquer dialeto.