Estou lendo Hereges, de Leonardo Padura, o cubano que escreveu O Homem que Amava os Cachorros. A ficção tem como ponto de partida o episódio real da chegada ao porto de Havana de um navio superlotado de refugiados judeus, fugidos da Polônia e da perseguição nazista. Depois de permanecer vários dias ancorado nas proximidades da ilha caribenha, o S. S. Saint Louis foi obrigado a retornar com sua carga de desesperados: apenas 28 dos 937 passageiros conseguiram desembarcar, provavelmente por terem subornado funcionários da imigração.
A tecnologia da informação extinguiu as distâncias e as fronteiras. Nossa pátria é o planeta.
Os demais foram rejeitados pelo governo cubano e tiveram que voltar para a Europa e para a morte certa.
Ocorreu em 1939, mas podia ser nestes nossos tristes tempos em que algumas nações europeias impedem o desembarque de imigrantes evadidos da miséria e dos conflitos armados em seus países de origem. Trata-se da tragédia humanitária mais desafiadora da atualidade, pois confronta o direito à vida dos malnascidos com o direito à tranquilidade dos desenvolvidos. Esse talvez devesse ser o assunto prioritário das organizações mundiais e do encontro entre os líderes das grandes potências. Mas não: os senhores Trump e Putin se reúnem a portas fechadas, geram uma onda de fofocas e, para saber o que eles realmente disseram um para o outro, parece que será preciso convocar a tradutora da conversa.
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Definitivamente, não é doce morrer no mar. Quase três anos já se passaram, aquela imagem pavorosa do menininho sírio morto numa praia da Turquia ainda nos assombra – e não passa semana sem que dezenas de imigrantes pereçam afogados na travessia desesperada em busca da terra não prometida. Para fugir da miséria e da morte precoce, eles submetem-se à exploração dos traficantes de seres humanos, embarcam em verdadeiros navios negreiros e, invariavelmente, encontram fechados os portos europeus. Nesta semana, um novo retrato foi acrescentado à galeria de horrores do êxodo contemporâneo: o da sobrevivente de olhos esbugalhados encontrada a bordo dos destroços de uma embarcação na costa da Líbia, na companhia dos corpos de outra mulher e de uma criança. O mundo, infelizmente, está mais para Castro Alves do que para Dorival Caymmi: “Senhor Deus dos desgraçados!/ Dizei-me vós, Senhor Deus!/ Se é loucura... se é verdade?/ Tanto horror perante os céus?/”.
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Por que se preocupar com a crise alheia quando temos a nossa, tão próxima e tão grave, feita de corrupção, violência urbana, descrença nas instituições e miséria crescente, incluindo aí imigrantes com sarampo e outras mazelas? Simplesmente porque a tecnologia da informação extinguiu as distâncias e as fronteiras. O que acontece numa caverna da Tailândia nos interessa e comove. Achamos bem feito que os racistas franceses tenham de aplaudir uma seleção campeã formada majoritariamente por filhos de imigrantes. Repudiamos a desumanidade da legislação norte-americana que separa mães de filhos para inibir onda migratória.
Nossa pátria é o planeta.
Não há mais ilhas. Há mar.