Desde julho passado, Paula Harraca é a nova CEO da Ânima Educação, que tem cerca de 700 polos educacionais no país e controla 18 instituições de Ensino Superior, como UniRitter e Fadergs no RS, compradas em 2021. É a primeira mulher no principal cargo executivo e primeira fora do grupo dos fundadores a assumir o comando da gigante de capital aberto, ou seja, com ações negociadas na bolsa. Nascida em Rosário, na Argentina, onde começou a carreira como trainee do grupo siderúrgico ArcelorMittal, mudou-se para o Brasil há 13 anos, depois de ter passado por Espanha, Luxemburgo, Canadá e Trinidad e Tobago.
Sua carreira começou na Argentina, como única mulher na área. Depois, esteve em cargos ainda não ocupados por mulheres. É uma trajetória de pioneirismo?
Respondendo de maneira bem assertiva, sim (risos). É algo que ocorreu naturalmente, não busquei. Quando olho para trás, percebo.
E como encara?
Comecei a ver que era a única mulher em um conselho, a única em uma diretoria, e veio a responsabilidade de garantir que, mesmo que tenha sido a primeira, não seja a última. Por onde passei, sempre ficaram mais mulheres. É querer se desafiar a melhorar e fazer a realidade mais plural, inclusive em épocas em que nem se falava sobre isso.
Por que você mudou da ArcelorMittal para a Ânima, do aço para a educação?
A mudança sempre tem uma escolha e uma renúncia. Com 20 anos de ArcelorMittal, ao redor dos 40 anos de idade, comecei a refletir sobre a segunda metade da vida e da carreira. Até comecei a fazer terapia. Estava em uma empresa de que gostava, conhecia o dono, tinha salário milionário. Mas precisava descobrir minha missão. Não buscava cargo, mas propósito, assumir protagonismo e criar um futuro melhor. Sou filha de professora universitária, e se estou aqui hoje, é porque a única e melhor herança que tive foi a educação. Não tinha clareza de que iria para esse setor, mas quando surgiu a proposta, fez muito sentido.
É outro pioneirismo, certo?
Por vários prismas. É a primeira vez que estou CEO. Também sou a primeira não-sócia que assume a liderança executiva da Ânima e faço parte do restrito grupo de menos de 5% de mulheres com responsabilidade de liderar executivamente uma empresa de capital aberto no Brasil.
Por que prefere dizer que "está" no cargo?
Porque não somos um cargo, somos muito além de um cargo. Nunca podemos subestimar o poder de uma caneta, claro. Mas é uma distorção muito comum no ambiente corporativo as pessoas se acharem o cargo. Somos todos vulneráveis, e o ego faz parte do ser humano. O problema é quando o ego domina. O cargo é uma missão, estar a serviço de algo. Pode ser perigoso se achar o cargo, vem com uma série de privilégios.
Em fase de ressignificação do ESG, como alinhar propósito, lucro e impacto, um tema de seu livro?
O que ocorre são etapas comuns de todo processo de mudança. Só que estamos em um mundo de crises. Temos 17 grandes desafios como humanidade, estabelecidos em 2015 pela ONU (Organização das Nações Unidas) como ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável). O grande desafio é trazer para o centro dos negócios, não como acessório. A forma de alinhar lucro e propósito passa pela criação de negócios mais conscientes e comprometidos com a efetiva geração de impacto na atividade principal. Há poucos meses, a Ânima começou a acompanhar como a empresa aproxima os jovens que estão saindo das escolas ou das universidades ao mercado de trabalho, ao sonho, ao que sociedade, empresas e governo precisam. Mostrou que 80% estão trabalhando na área em que se formaram. É um número grande. Então, é preciso olhar para estratégias de impacto em relação aos 17 ODS e tentar focar em um desafio, concentrando os esforços no que a empresa faz todos os dias.
O que é competitividade tóxica, que você aborda no livro?
Percebo que o consumismo e a competitividade vêm de uma mentalidade de escassez, de um jogo finito, em que um tem de perder para o outro ganhar. É desse lugar tóxico que a precisamos sair. Se as demais empresas de educação estão fazendo um ótimo trabalho, que bom. Estão contribuindo para o propósito da Ânima, que não vai conseguir fazer tudo sozinha. Por isso, trago o conceito de competitividade consciente.
E como mudar a mentalidade?
Tudo depende do que medimos e dos incentivos. O mundo ainda comemora o sucesso, condena o fracasso e o erro e não valoriza a aprendizagem. O processo que considero ousado parte da premissa de que o único e principal concorrente que temos, seja individual ou coletivamente, é quem fomos ontem. Quando nos propomos a criar um futuro melhor, é preciso outro tipo de mentalidade, que é da abundância. Não tem fórmula mágica, tem consistência, trabalho em equipe, integridade e compromisso de aprender com os erros. Em um mundo de ameaças, prefiro transformar em oportunidades. Posso ser otimista, mas acredito que seja possível.
Como avança a representatividade feminina em cargos de liderança?
Recebi recentemente o relatório Women in the Workplace 2024, da McKinsey. Um dos pontos é o equilíbrio do trabalho da mulher com trabalho não-remunerado em casa, como a maternidade. Há progresso real, mas também surpreendentemente frágil. São 39% de mulheres em posição de gerente, 37% em diretoria, 34% em vice-presidência e 29% em nível de CEO. É uma alta considerável olhando os últimos 10 anos. Em 2015, eram 17% de mulheres em nível de CEO. Os desafios são as dificuldades de entrada e evolução.
Como superar essa fragilidade?
Não é um problema simples, passa por múltiplas variáveis. Uma primeira necessidade é a educação. Esse é um recorte de grandes empresas. Quando olhamos para as de médio ou pequeno porte, ainda deparamos com situações como uma mulher questionada se tem filhos em entrevista de trabalho. É uma pergunta que jamais é feita a um homem. A distribuição das tarefas domésticas é um paradigma que precisa ser quebrado. Ainda estamos muito polarizados, tentando alocar toda a responsabilidade na mulher. A conquista de direitos da mulher no Brasil é muito recente. E não vem livre, aumentam os direitos, mas as responsabilidades permanecem. Sinto que tenho compromisso muito grande, porque o privilégio que tenho se traduz na responsabilidade de mostrar que, de fato, é possível dar conta. Não é fácil, mas temos uma rede de ajuda. Não existem super-heroínas, não tenho superpoder. Sou igual a qualquer outra mulher que tem seus desafios e tenta desmitificar. Temos de desconstruir todos esses estigmas sociais e aliviar o peso na mulher. A forma de mudar é dando oportunidade e apoio e eliminando obstáculos e preconceitos. A mulher se cobra mais do que o homem. Com tanto dever, a mulher tem dívida.
A Ânima tem planos de expansão no RS?
Estamos a pleno vapor com o planejamento estratégico que envolve as unidades do Brasil inteiro. É trazer poder às pontas, que vão identificar estratégias, oportunidades e desafios. E também olhar o ecossistema. Temos marcas muito fortes no RS. E estamos fazendo o exercício de olhar para o Estado como a potência que é.
Tem algum investimento previsto ou a fase ainda é de estudo?
A fase ainda é de estudar, mas o que tem de concreto é o movimento de trazer força e autonomia às marcas. A Ânima conseguiu integrar seus sistemas e tem condição dar mais força às universidades. Agora, vamos olhar para o fortalecimento das nossas marcas nos seus territórios.
Uma possível venda de unidades gaúchas passa pela fase de estudo?
No RS, não. Olhar para o portfólio de marcas sempre é um exercício, mas temos convicção de que nossas escolas no Estado são fortes e têm tradição.
A empresa tem planos de vender alguma unidade fora do RS?
Hoje, não tem plano efetivo. Mas é preciso estudar. Nossa agenda é de crescimento sustentável, que passa por crescer e potencializar o alcance, sem comprometer a estrutura de capital. Estamos fazendo um trabalho consistente de reduzir a alavancagem (endividamento). Hoje, a Ânima não se está obrigada a vender nenhuma escola (para quitar compromissos).
A Ânima vem de um primeiro trimestre com lucro líquido recorde. O que pretende fazer de diferente como CEO?
Não posso falar muito em resultados, porque estamos em véspera de anúncio. O que posso dizer é que essa trajetória consistente de resultado ocorre por voltarmos a dar força às marcas. Sabemos que a educação no Brasil é regional. Os alunos escolhem UniRitter, não escolhem Ânima. Minha missão é cuidar do propósito e do pragmatismo, garantindo que nenhum vai dominar o outro. Propósito sem pragmatismo é impotente. E pragmatismo sem propósito não faz sentido.
Então, há expectativa de bons resultados para os próximos trimestres?
Sólidos, consistentes e crescentemente evidenciando o processo de crescimento.
*Colaborou João Pedro Cecchini