Especialista em governança corporativa, Evan Epstein atua há cerca de 15 anos no Vale do Silício. Em 2017, fundou a Pacifica Global, consultoria na área. Antes, foi diretor executivo do Arthur and Toni Rembe Rock Center for Corporate Governance, iniciativa entre a Stanford Law School e a Stanford Graduate School of Business.
Desde 2020, é diretor executivo do Center for Business Law e professor adjunto do Hastings College of the Law da Universidade da Califórnia. Mesmo com esse currículo, Epstein não vacila em usar a expressão "ninguém sabe" quando se trata da gestão das empresas de inteligência artificial, que prometem mudar o mundo com sua tecnologia. Nesta entrevista, explica os motivos.
O que é empresa de benefício público, formato da maioria das que desenvolvem inteligência artificial e agora adotado pela OpenAI?
É semelhante a uma empresa B. A diferença é que as empresas B precisam se certificar (como fez a Gerdau nos EUA). A OpenAI está mudando. Foi criada como empresa sem fins lucrativos e agora quer se constituir como uma de benefício público (o principal objetivo seria se proteger de aquisições hostis), e estão colocando nos estatutos que o benefício é para a humanidade.
O que significa isso exatamente?
Ninguém sabe. O que a OpenAI e outras companhias parecem querer dizer é que essa tecnologia é tão importante para o mundo que precisam de estrutura que permita fazer isso.
Na prática, qual é a diferente, tem tratamento tributário diferente?
Pode ter a ver com accountability (prestação de contas). Se for processada por alguma irregularidade, a empresa pode argumentar que não existe apenas para maximizar o lucro dos acionistas, mas também para maximizar o ganho para a humanidade. Ninguém sabe o que significa. Mas a empresa consegue se defender de potenciais processos judiciais dizendo que age a favor do interesse de todos. O fato de a OpenAI ser uma organização sem fins lucrativos era algo muito estranho.
Que tipo de companhias já são de benefício público nos EUA?
Existem cerca de 15 empresas de capital aberto nessa categoria. Uma é a Avon, controlada pela Natura. O que é muito estranho é as startups tecnológicas de topo ocuparem esse espaço. É uma tendência. Ninguém sabe se há necessariamente uma visão nefasta ou de duplo sentido. Pode ser que tenham boa intenção. Mas ainda precisamos ver.
E qual é a regra para prestação de contas desse tipo de negócio?
Nos Estados Unidos há grande pressão de acionistas e advogados dos requerentes que não existe no Chile, na Argentina e no Brasil. É comum que empresas sejam processadas nos EUA por questões relacionadas ao conselho de administração, enfrentem class action (ações abertas por uma pessoa ou pequeno grupo que representa uma classe, definida pelo interesse comum). Companhias com capital aberto, como Tesla, Google e Microsoft costumam enfrentar muitos dessas demandas judiciais. Quando a empresa é de benefício público, é fechada, fica menos exposta a essas questões.
Seria uma posição defensiva?
Dizem que a OpenAI, talvez no futuro possa fazer um IPO (abrir o capital fazendo emissão pública de ações), mas ninguém sabe o que realmente quer. Estamos em um novo território. Precisamos entender qual é o objetivo. O que dizem é que a tecnologia pode mudar o mundo. E isso seria tão importante que não poderia privilegiar só acionistas. Há duas visões: uma é a intenção dos investidores de maximizar o lucro, outra é pessoas que querem segurança. Por isso, outras empresas que desenvolvem inteligência artificial, como a Anthropic, também são empresas de benefício público. Essa caracterização permite menor prestação de contas aos investidores.
Não agrega falta de transparência a um tema já opaco?
Sam Altman (fundador da OpenAI) foi demitido (mais tarde, recontratado por pressão de investidores como a Microsoft) justamente por esse motivo. Em cinco dias, mudou a decisão. A sua analogia é perfeita. A OpenAI diz que está criando um fundo de benefícios a longo prazo, que vai nomear um conselho para privilegiar a humanidade. Não sabemos se é verdade, talvez seja. Temos de cuidar para não maximizar o interesse de poucos. Talvez não seja uma má estrutura, mas na OpenAI, não funciona. É bom lembrar que a empresa era uma organização sem fins lucrativos, e agora é uma empresa avaliada em US$ 157 bilhões, de lucro máximo, de capital fechado. Mudaram completamente a origem. É por isso que 40 dos 44 funcionários da OpenAI saíram.
E também para embolsar os lucros?
Penso que é uma lição às pessoas que venderam ações para ganhar milhões de dólares. Gerou uma grande quantidade de milionários. Aparentemente, há elevado número de milionários que eram empregados. Houve uma grande corrida para investir em inteligência artificial. Acredito que 90% desses investimentos vão desaparecer, como nas empresas “ponto com”. Muitas implodiram. Mas também surgiram Amazon, Google. A mesma coisa vai ocorrer agora. Muita gente investe, talvez a OpenAI, em 10 ou 20 anos, seja uma Google ou Microsoft. No final, são todos próximos: OpenAI é a Microsoft, a Anthropic tem a Amazon como investidora, Inflection AI é agora Microsoft também. Não há mais iniciativas independentes.
Adianta regular?
Para privilegiar a segurança, é preciso ter regras globais. Não adianta os Estados Unidos terem uma visão, China, outra e Europa, outra. Existe um movimento para ter segurança, mas é difícil de concretizar. É uma corrida entre Estados Unidos e China em que a Europa pesa pouco. A Califórnia (Estado americano) tentou aprovar uma lei regulando inteligência artificial, mas não conseguiu. Dizem que há lobby muito grande das big techs para não aprovar. Elon Musk sempre falou sobre regulação. Ele acredita que é a inteligência artificial é muito perigosa. Agora, com xAI, está participando do mercado, mesmo tendo apoiando o projeto de lei na Califórnia. Acredito que seja tudo muito geopolítico, porque, se o que dizem for verdade, se a IA realmente pode mudar tudo, quem vencer será mais poderoso do que todos os outros. É por isso que a governança é tão importante. A forma como as estruturas são estabelecidas é importante. É perigoso que Sam Altman tome decisões para o resto do mundo.
Mas Sam Altman assinou manifesto por regulação e controles, não?
Sim, mas o contra-argumento é que, ao assinar, a empresa se consolida e consegue matar todos as outras que vêm atrás. É o típico argumento de quem pode ser regulado tem recursos para seguir uma regulamentação que será muito onerosa para todos os outros. Sam Altman é provavelmente o mais astuto captador de recursos. Mostrou que tem a capacidade de sobreviver e fazer US$ 157 bilhões. Mas tem muitos esqueletos no guarda-roupa, não só com a OpenAI, mas também antes. Há muitas dúvidas, e se o conselho decidiu tirá-lo, é por algo.
Não foi só disputa de poder?
Tudo é poder, mas aparentemente a maneira como ele dirige a empresa faz com que todos briguem. Todo esse setor é muito curioso, porque como a OpenAI era uma organização sem fins lucrativos não tinha patrimônio, em tese. E as pessoas perguntam qual seria o incentivo. Depois, foi publicado um artigo no Wall Street Journal, dizendo que ele estava fazendo construções paralelas com OpenAI e outras startups, e que o fundo da OpenAI Ventures estava em seu nome. Há muitas dúvidas.
Apesar dessa falta de transparência, quase todas as empresas apostam em inteligência artificial. O que fazemos, fechamos os olhos e seguimos?
Não é muito diferente de outras ondas de tecnologia. As startups são opacas, por exemplo, porque não tem ações no mercado. A única diferença, agora, é essa nova estrutura, de empresa de benefício público. Outro aspecto novo é a valorização. Há 10 anos, era impossível existir um hectocorn (unicórnio multiplicado por 10, ou seja, startup com valor superior à US$ 100 bilhões). E também é novo que isso tudo ocorra fora do mercado aberto. Não sabemos o que essas empresas multibilionárias com funcionários em todo mundo fazem. E essas são questões legítimas.